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Velhas e novas bobagens: o ceticismo científico deve ser levado a sério?
Denise Salomão Goldfajn* (SBPSP e SBPRJ)
“Seria um erro supor que uma ciência consista inteiramente de teses estritamente comprovadas, e seria injusto exigir isso. Somente uma pessoa inclinada a uma paixão por autoridade fará essa exigência, alguém com um desejo insaciável de substituir seu catecismo religioso por outro, embora científico. A ciência tem apenas algumas poucas proposições apodícticas em seu catecismo: o resto são asserções promovidas por ela a um certo grau de probabilidade. Contentar-se com essas aproximações da certeza e, na ausência das comprovações derradeiras, ser capaz de dar continuidade ao trabalho construtivo, é justamente um sinal do modo de pensamento científico” – Freud, S. (1966) “Conferências Introdutórias de Psicanálise Partes I e II” in Vol. XV, ESB, p.59, texto original 1915-1916.
A epígrafe acima já seria uma resposta suficientemente boa para contextualizar o tipo de pensamento contido no livro “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, recentemente lançado pela Editora Contexto. Os autores escolhem o que chamam de temas, doze no total. Os temas são aleatórios e diversos, e vão desde a astrologia e discos voadores à acupuntura e homeopatia, passando por categorias descritas como curas naturais, modismos de dietas e a pseudoarqueologia. A mistura de terapias consagradas e crenças peculiares em uma mesma lista não é sem propósito. Visa ridicularizar terapias popularmente conhecidas e advertir aos possíveis leitores sobre os perigos das pseudociências, principalmente no cuidado com a saúde, física e mental.
Na argumentação dos autores, pior ainda é se essas práticas, supostamente sem base científica, são adotadas em políticas públicas de saúde, desperdiçando o dinheiro do contribuinte. Por isso as pseudociências são prejudiciais e devem ser denunciadas e combatidas. Charlatões são aqueles que oferecem esses serviços. A psicanálise e os psicanalistas estão na lista dos temas denunciados pelos autores.
Velhas Bobagens
Cento e oito anos separam a citação de Freud acima mencionada, do livro (das) Bobagens recém-publicado. Não há novidades entre as críticas à psicanálise citadas pelos autores, já as conhecemos desde a época de Freud. Correspondem às velhas bobagens. Em um rápido resumo:
1. A psicanálise forneceria conceitos abstratos não verificáveis empiricamente, afinal não há como colocar o inconsciente em uma lâmina de microscópio;
2. Os relatos clínicos de sucesso estariam contaminados pela iatrogenia e sugestão. Os relatos de casos de Freud teriam sido, na verdade, fracassos e não provariam nada sobre os conceitos, método e tratamento propostos pela psicanálise – aqui, os autores ignoram o fato de que a maioria das discussões de casos clínicos, seja em psicanálise ou em outras disciplinas médicas, ocorrem justamente para discutir a dificuldade da aplicação de conceitos e do processo terapêutico, é que seria uma prática para questionar, não para consagrar;
3. Por fim, o argumento fundamental do livro: os resultados de práticas que não podem ser randomizadas e não são estatisticamente significantes não são ciência, são pseudociência, frutos de ignorância e de saberes vulgares.
Para curar os males mentais só mesmo a psicologia baseada em evidências, a conhecida terapia cognitivo-comportamental, herdeira do behaviorismo e do positivismo científico. Só essa modalidade de terapia poderia satisfazer o crivo dos deuses do ceticismo científico, doutrina seguida radicalmente por Natalia Pasternak e Carlos Orsi.
O capítulo dedicado a desmascarar a psicanálise contém vinte e seis páginas. Nessas páginas, os autores tentam embasar sua retórica disparando como rajadas de balas referências de trabalhos de autores reconhecidos como críticos à psicanálise. Infelizmente nenhum autor que tenha rebatido as críticas citadas foi mencionado. O livro, portanto, está longe de ser um trabalho acadêmico ou de produção científica. É importante dizer que temos excelentes autores que já discutiram parte das referências citadas no livro, entre eles: Christian Dunker em uma série de vídeos no Youtube, Paulo Beer, autor do livro ‘Psicanálise e Ciência: um debate necessário” (2017), e Renato Mezan em artigo de 2006.
Desde os anos 90 a International Psychoanalytic Association vem desenvolvendo um trabalho importante através de seu comitê de pesquisa para divulgar as pesquisas científicas publicadas em periódicos reconhecidos. Uma compilação desses trabalhos está disponível gratuitamente e se chama Open Door Review of Outcome and Process Studies in Psychoanalysis (ODR-III), já em sua terceira edição. Nessa compilação encontram-se pesquisas conceituais, empíricas e estatísticas sobre a psicanálise em diversas partes do mundo. (Pode ser encontrada em
https://www.ipa.world/en/
Certamente os autores não pesquisaram sobre o estado atual da produção científica em psicanálise, tanto em nosso país como internacionalmente, o que constitui uma falta grave para quem faz jornalismo científico. Não basta reafirmar suas próprias convicções à exaustão. Para além da atitude científica que os autores dizem praticar no livro, é necessário promover o diálogo com quem representa o pensamento contrário.
“O meio é a mensagem” (Marshall McLuhan)
A microbiologista Natalia Pasternak e seu marido, o jornalista Carlos Orsi, se dizem interessados em ciência. Mas eles não fazem ciência, não publicam trabalhos em periódicos científicos de circulação nas disciplinas citadas. Consideram-se divulgadores científicos, advogados e defensores da ciência baseada em evidências. São promotores do jornalismo científico, pretendendo com isso influenciar políticas públicas. Criaram em 2018 uma organização sem fins lucrativos chamada Instituto Questão de Ciência (IQC) com objetivos ambiciosos. Segundo o site (https://iqc.org.br/) : “A função primordial do Instituto é trazer a ciência para os grandes diálogos nacionais e globais em torno da formulação de políticas públicas.”
De acordo com o site acima, o Instituto oferece diversos serviços como letramento científico, auditoria de processos em ciência e tecnologia, pareceres sobre o que é ou não científico entre outros serviços.
Em entrevistas, Natalia, que ficou conhecida por defender as vacinas durante a pandemia e combater o negacionismo, se disse surpresa em saber que os psicanalistas a apoiavam em sua defesa da ciência, sua posição como praticante do ceticismo científico de Carl Sagan, levou-a a denunciar as pseudociências e entre elas a psicanálise.
O Ceticismo Científico de Carl Sagan
Carl Sagan, astrofísico estadunidense, é conhecido por divulgar o ceticismo científico, que é a prática de duvidar de qualquer afirmação que não tenha comprovação baseada em evidências. Publicou cartilhas de como praticar o pensamento crítico e solicitou a seus seguidores que praticassem o denuncismo das pseudociências. É um exemplo do que Freud já apontava na citação que abre esse artigo, até mesmo a defesa do pensamento dito científico pode ser tornar uma prática do pensamento religioso e fanático. O livro é, portanto, material de divulgação dessa doutrina.
Chamo a atenção para as novas bobagens, onde o meio é a mensagem. A divulgação midiática, a discussão e reprodução das entrevistas com os autores são, portanto, mais importantes do que o livro em si. Quem comprar o livro, terá dificuldades para ler devido ao caráter ruminativo das argumentações. Não é um livro para o público em geral e sim destinado a quem concorda com os preceitos do ceticismo científico. As teses e conceitos são frágeis e superficiais.
Para os psicanalistas, pelo menos, é fácil reconhecer erros conceituais graves e perceber a pouca informação da dupla sobre a psicanálise.
Já a visitação ao site do IQC, a busca pelo nome de Pasternak e Orsi nas plataformas digitais, as reproduções instagramáveis, as lives, estas sim proliferarão e parecem ser o objetivo por trás dessa publicação que mais parece uma alucinação produzida pelo chatGPT.
*Denise Salomão Goldfajn, Psy.D é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e de São Paulo. É doutora em Psicologia Clínica pelo William James College e Pós-doutora em psicologia clínica pela USP. Membro do comitê executivo do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Férenczi.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Politica e Sociedade; Instituições Psicanalíticas; Cultura
Palavras-chave: ciência, psicanálise, ceticismo científico, pensamento religioso, pseudociências.
Imagem: labmanager.com
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