Observatório Psicanalítico – OP 412/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

O tempo do lugar dos pais

Celso Gutfreind (SBPdePA)

“A carne é triste, que saco! E eu já li todos os Freuds.” (Mallarmé, em tradução traidora)

No começo, era o convite do ágil OP para eu dizer algumas palavras sobre o meu Livro dos Lugares. Já rumorejava, dentro de mim, o poeta Mário Quintana, com a sua máxima de que um escriba nunca deve forçar a barra para que seus versos sejam ouvidos, mas sempre deve dizê-los, ao ser convidado.

Abençoado pelo poeta, aqui estamos dizendo. “O Livro dos Lugares” é vago em seus começos como todos somos, em nossas vidas e análises. Havia o desejo pretensioso narcisista, comum aos nascimentos, de fazer um título à la Borges, como uma espécie de nome que pudesse inaugurar um mandato a um só tempo leve e denso, desses que facilita a sempre difícil continuidade da existência. Livro dos Lugares parecia ter ali uma filiação perfeita, pelo menos até a chegada da vida como ela é, com os furos de todo telhado, conforme Tom Jobim, ou a posição depressiva, que no fundo é a mesma coisa. A todas essas, um livro real já devaneava com os seus leitores imaginários.

Outro começo ou filiação era o grande Freud com o seu Pequeno Hans, mas fazendo questão de anunciar que não estavam sozinhos. Junto a eles, havia Max Graf, um pai. Intuitivamente, sem amparo de nenhuma metapsicologia, Freud cavava ali um lugar para os pais. Ao final de poucos meses de trabalho (era assim na época), todos acreditavam que a coisa funcionou graças a uma intervenção inteligente do analista, na qual o bigode robusto de Max teria sido deslocado para os arreios de um cavalo temido pelo filho, por causa do amor pela mãe. Estávamos diante de um novo Édipo, finalmente ouvido, devidamente nomeado e, portanto, agora menos temido. Todos saíram felizes daquele único encontro presencial durante o bolo da análise, com direito à cereja de Hans perguntar se “o professor” falava com Deus.

Podem ser divinas as interpretações humanas, mas o tempo fez o que costuma fazer com as grandes obras literárias. Poliu-a e aperfeiçoou-a como se aquele encontro entre humanos tivesse algo de conto folclórico. Já não podemos, hoje, pular a parte que Anna Freud e Melanie Klein pularam em suas leituras tão dedicadas a apurar uma técnica para acolher o sofrimento psíquico de uma criança e poder ouvi-la como fizera o mestre, mas, ao contrário dele, não ouvindo os pais. Foram necessários alguns anos para que aportasse um leitor mais integrado como Winnicott, com a lição de que, fora de um conto de fadas, uma criança não existe sozinha. Por isso, passados mais de cem anos do relato, nós, os novos, fazemos como o velho Freud, buscando um lugar sagrado para a parentalidade na análise e na vida dos filhos. Porque, Monsieur Mallarmé, devidamente analisada (ou não), a carne pode ser alegre e há muitos livros de Freud para reler.

Este é o tema do Livro dos Lugares – a forma tenta ser poética – em um cenário como o nosso, situado a mais de cem anos da introdução de um narcisismo que só piorou, na cultura e fora dela. Porque nos tornamos mais solipsistas, individualistas (narcisistas), com menos lugar para o outro, inclusive os pais no começo da vida de seus filhos entregues a telas e outros que tais, o que vem gerando panes poéticas, seguidas de panes narrativas, conforme a literatura tenta mitigar, e a psicanálise explicar, sob a aparição cada vez mais frequente de transtornos da subjetividade.

O livro conversa com os velhos Freud e Winnicott, além dos mais jovens como Golse e Lebovici. Mas já estamos no final do nosso texto e os fins costumam evocar o começo. Por isso, Quintana, dentro de mim, volta a dar pitacos como o daquela vez em que lhe perguntaram o que quis dizer com o seu poema e ele respondeu lendo o poema simplesmente como quem diz que não se explica uma obra (uma vida), ela que encontre ouvidos e condições para dizer por si.

O Livro dos Lugares não é imenso, mas as suas 141 páginas impedem que eu o reproduza inteiro, aqui e agora, além do fato de que ainda sou um pequeno aprendiz do grande mestre. E, não podendo recitá-las, convido vocês a lerem o livro, do começo ao fim. Sugiro que acrescentem uma música de fundo, qualquer uma de sua preferência. Porque é da música que viemos, é com música que somos feitos, e o lugar dos pais precisa antes soar um bocado no tempo até que a criança possa cantar por ela mesma e construa a espontaneidade de seguir soando e crescendo, crescendo e desfrutando o que lhe cabe, antes de reencontrar no final o silêncio do começo.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Referência: 

Gutfreind, Celso (2022), O Livro dos Lugares – dos pais na análise da criança – do bebê na análise do adolescente, Porto Alegre, Artes & Ecos. www.arteseecos.com.br

Categoria: Cultura

Palavras-chave: Psicanálise infantil, O Lugar dos Pais, Parentalidade

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Categoria: Cultura
Tags: O Lugar dos Pais | Parentalidade | Psicanálise infantil
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