Observatório Psicanalítico – OP 411/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Esse novo que nunca chega

Malu Gastal (SPBsb) 

Recebo, num grupo de WhatsApp, uma mensagem com um vídeo. Aciono o link, e aparece Maria Rita cantando conduzindo um furgão, em uma estrada, enquanto canta “Como nossos pais”, com aquela voz que continua tão parecida com a de sua mãe. Lembro de como ao escutá-la pela primeira vez, conversei em minha análise sobre a estranheza que sentia ao ouvir uma voz que era tão, mas tão parecida com a de sua mãe, como se Elis tivesse revivido. Meu analista perguntou: “Parecida demais?”. Rendeu…

Mas o vídeo prossegue e eis que surge, em uma velha Kombi a própria Elis, revivida pela Inteligência Artificial, cantando os versos de Belchior que embalaram a revolta de minha geração, no final da ditadura. Tudo me emociona. A música (como sempre), o encontro entre a mãe e a filha que a perdeu tão criança, as cenas de encontros, festas, acampamentos (escutei “Falso Brilhante”, pela primeira vez, no toca-fitas da Brasília – o carro – de um amigo, a caminho de um acampamento no litoral de Santa Catarina). Tudo me comove.

Sinto-me, ao mesmo tempo, profundamente incomodada. Agora tudo me perturba, e ainda não sei bem o motivo (mas intuo, claro). O anúncio me pegou em Porto Alegre, para onde havia ido naquele dia para o enterro de meu irmão, nove anos mais velho do que eu. Ele era jornalista – começou como repórter, mas logo passou a escrever sobre cultura – música, em particular. Depois, quem sabe seguindo um pouco os passos dessa irmã mais nova, dedicou-se ao ambientalismo, primeiro como jornalista e ativista e depois como gestor de um órgão ambiental.

Em certo sentido, me aproximei de Elis ainda muito criança por sua mão (e de meus pais, que amavam música) e não consegui deixar de conversar internamente com meu irmão sobre o anúncio. Mas, principalmente, pensei no que eu sentiria se visse sua imagem, já não em vida, em um anúncio de motosserra.

Os motivos de meu incômodo ficavam cada vez mais claros. O que decidiria Elis, se estivesse viva, sobre este comercial? E Belchior, que teve sua música de verve rebelde sequestrada para, após uma “tesourada” esperta do comercial, ser utilizada como um hino à inovação (conceito síntese do capitalismo voraz que transforma o novo em produto, convertendo, aqui, o que era para ser revolucionário em carro elétrico)? O que sentiriam os dois artistas, que lutaram ativamente contra a ditadura militar, ao ver sua obra sendo usada na campanha publicitária de uma empresa que colaborou com o regime? Meu mal-estar só cresce, agora se convertendo em vergonha de mim mesma. Como eu me senti tão emocionada assistindo ao comercial?

A decisão de usar ou não a imagem de Elis, é claro, cabe à família, e parte dela inclusive participou do comercial. Não sei nada a respeito da autorização da família de Belchior, que teve música e imagens utilizadas no vídeo. Sei um pouco sobre meus afetos, o suficiente para ficar em paz com a emoção que senti. O comercial é esteticamente lindo. As cenas que ele mostra mobilizam afetos, lembranças de acontecimentos e de pessoas (inclusive de meu irmão, de quem tinha acabado de me despedir). A música está colada em minha alma. Como eu poderia não me emocionar? Fico livre da culpa, mas espantada com a eficácia do vídeo. Que competência dos publicitários! Mas não é essa, nos ensinou Edward Bernays, sobrinho de Freud, a função da publicidade, a de mobilizar emoções e desejos nos cidadãos convertidos em consumidores? Como afirma André Gorz, aqui o propósito é “produzir desejos e vontades de imagens de si e dos estilos de vida que, adotados e interiorizados pelos indivíduos, transformam-nos nessa nova espécie de consumidores que não necessitam daquilo que desejam, e não desejam aquilo de que necessitam”. Bingo.

Quando Peter Cushing foi “revivido” em Rogue One, em 2016, “atuando”, depois de  morto mais uma vez como Grand Moff Wilhuff Tarkin, papel que havia representado em Star Wars: “Uma Nova Esperança”, em 1977, muito se discutiu sobre a legitimidade ética do gesto da franquia. Eu mesma fiquei me perguntando sobre isso, apesar de que penso (fantasio?) que ele não se importaria tanto, uma vez que era um papel no qual já havia atuado. 

Suposições, como é suposição imaginar o que meu irmão sentiria se, depois de morto, tivesse sua imagem usada num anúncio de motosserra. Como Elis, ele não sentiria nada, porque já não está mais aqui para dizer o que sente. Neil Young, felizmente vivo, processou Donald Trump por ter usado músicas de sua autoria na campanha presidencial. O mesmo fez Eddy Grant. Sorte a deles estarem vivos…

Já em paz comigo mesma, mas ainda desconfortável com o comercial, escuto “Como nossos pais” em sua versão integral, nas vozes de Belchior e de Elis. Lembranças da Brasília, da paisagem da Pinheira, da noite que passamos ao relento, à beira mar, das músicas que ouvíamos e cantávamos juntos. Dos sonhos, dos amores, dos projetos.

Sinto que o vídeo e tudo que ele representa e mobiliza nos colocam diante do dilema ético de proteger o legado, a memória e o que nos parece (nos limites enormes de nossa possibilidade) ser o que aqueles que amamos mas não estão mais aqui prefeririam que fizéssemos. No caso de meu irmão, seria, sinto e penso, manter a luta pela existência do planeta, o que elimina qualquer possibilidade de anúncio de motosserra. Posso estar errada, é claro, mas acredito que no caso de Belchior e Elis seria evitar o anúncio de uma montadora que colaborou com a ditadura que ambos combateram com sua arte. Seria manter acesa a chama da rebeldia que sonhava com um mundo onde nossas emoções nos pertencessem, e não aos publicitários. Seria manter a fé no novo.

A obra de arte pertence ao público, é verdade, que lhe dá o sentido idiossincrático que cada um constrói a partir de sua experiência pessoal. Mas estamos falando do uso comercial (e mesmo ideológico) de uma obra de arte de dois artistas cujo percurso foi marcado por lutas pessoais e políticas de conhecimento público. Podemos (que outra escolha teríamos, diante de nossos afetos?) nos permitir nos emocionarmos  sem culpa com o anúncio. Emoções são livres e assim devem permanecer. São nosso patrimônio. Mas, sobretudo como psicanalistas, vale pensar sobre as muitas, incontáveis questões que o anúncio suscita, algumas, como a relação humana com a morte, tão caras ao nosso ofício.

Afinal, sigo acreditando que Elis e Belchior não participariam desse comercial, se vivos. Mas é só uma suposição, quem sabe apoiada em meu desejo e em meus valores que se ligam, de forma inelutável, àqueles que me precederam.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Politica e Sociedade; Cultura 

Palavras-chave: Belchior, Elis, IA, propaganda, mortalidade

Link da propaganda no YouTube: https://youtu.be/aMl54-kqphE

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Tags: Belchior | Elis | IA | Mortalidade | propaganda
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