Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Carta a um jovem psicanalista
Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP)
Querido colega, te escrevo por necessidade minha, porque preciso da tua ajuda para organizar uma ideia, ainda que precária, sobre aquilo que se chama “formação” do psicanalista.
Esse é um assunto que muitas vezes me parece arbitrário por ser distante e vindo “de fora”, com regras que sinto como violentas e colonizadoras. Mas ao mesmo tempo é algo que faz parte da minha carne porque aceitei, de bom grado, incorporar.
Baseada na minha vivência, digo que o primeiro requisito para se embrenhar por uma formação analítica nos moldes propostos pela IPA (três ou quatro sessões semanais de análise pessoal, mais o combo supervisão, seminários e centenas de milhares de reais) é a ingenuidade. Claro, sem ingenuidade não nos submeteremos a algo tão rigoroso e a perder de vista.
Mas não se arme já de preconceitos contra essa palavra. Vamos com calma: não é qualquer ingenuidade, é uma ingenuidade ambiciosa (também queremos ser do clube). Sentimento tolo em sua natureza, mas vital, porque nos mantém acordados. Seria mais bonito chamar de fé, mas estou despida de preciosismos, e admito que essa ingenuidade passa por muitas camadas – desde pensar em ganhar dinheiro “fazendo o que a gente gosta”, até mudar o mundo, mas no meu caso era sobretudo uma vontade de dominar a língua.
Pronto! Para mim, ser psicanalista era alcançar o ápice da capacidade de nomear tudo e assim aplacar a dor da própria amputação imposta pelos limites da linguagem: entrei na formação porque (talvez sem muita clareza) imaginava que os psicanalistas eram uma classe privilegiada que não andava com os pés inchados, às cegas pelo mundo, trombando em tudo. (Sempre achei engraçado o nome do prédio comercial onde fica a sede da minha sociedade: “Olimpic Tower”, soava profético!)
E quando você descobre que está enganado, já percorreu tanto chão, que em geral continua caminhando, desiludido. Mas também há aqueles que nunca se dão conta da armadilha e se mantêm achando que estão acima da humanidade, esses podem ser perigosos.
Você vai me perguntar: então vale a pena? E eu poderia citar Fernando Pessoa – “tudo vale a pena se a alma não é pequena”, mas aí eu não saberia te contar qual é a diferença entre uma alma que é pequena e outra que é grande sem entrar em moralismos que me apequenassem.
Só posso falar em meu nome mesmo: fazer parte da classe dos desiludidos me parece bom o suficiente e libertador, porque assim não me sinto em dívida com analistas, escolas, autores, mestres ou instituições e porque daí a saída que resta é desidealizar e se desenvolver. No meu caso, isso pode ser traduzido na construção de uma forma de usar a língua que me caiba – onde eu consiga me ajeitar de maneira mais ou menos satisfatória, e que sirva bem e me dê alguma alegria e me permita amar o outro na sua vulnerabilidade. (Veja quanta pretensão disfarçada)
Portanto, a minha ideia sobre formação é essa: você estuda muito, faz muita análise, gasta tempo, dinheiro, aprende, esquece, passa raiva, ama sobretudo, vive nascimentos e mortes, chora, cria filhos. É a vida, e na melhor das hipóteses você adquire não o fogo, mas a habilidade de produzir faíscas ao ouvir, escrever, falar, pensar e utilizar todo o seu metabolismo para transformar suas experiências em algo seu e que talvez aqueça o outro um pouco, até que ele produza suas próprias faíscas. E tem beleza aí.
Tive a ideia de te escrever inspirada nas correspondências de Freud, será que ele teria sido tão produtivo se não tivesse tantos interlocutores e não tivesse escrito e recebido as famosas cartas? Escreva para mim, quero saber o que você pensa sobre a formação e quem sabe possamos tecer uma vasta correspondência que nos enriqueça.
Abraços fraternos
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: Formação, Psicanalista, Édipo, Linguagem
Imagem: Édipo e Antígona, pintura a óleo de Antoni Brodowski (1828)
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