Nós da Curadoria queremos compartilhar e agradecer aos escritores, comentadores aqui do grupo e apoiadores do OP, nossa alegria. Publicamos hoje o OP de número 400, escrito pelo nosso colega Mariano Horenstein (Associação Psicanalítica de Córdoba, Argentina). Nestes 6 anos (completados em abril passado) publicamos quatrocentos ensaios.
Abraços e boa leitura, equipe de
Curadoria do OP
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Notícias de nosso pequeno mundo
Mariano Horenstein (APC)
Ainda emocionado e sentindo admiração pela a coragem de Vinicius Jr, encontro algum pudor ao trazer notícias do nosso mundinho. Todos nós sabemos que existe um mundo muito mais interessante, mais diverso e desafiador do que o das nossas instituições. E se há uma aposta possível no futuro – até para a sobrevivência das nossas instituições – é torná-las mais porosas em relação ao mundo que habitamos, deixarmo-nos questionar, deixarmo-nos ensinar.
I
Partindo da hospitalidade ao estrangeiro que sou aqui, não deixei de ler os debates publicados no OP. Se hoje me atrevo a escrever novamente, é graças ao texto de Ignácio Paim Filho (SBPdePA) – “Comitê da IPA para as questões raciais: Compromisso de manter o poder hegemônico do colonizador?” –, que aponta com lucidez e necessária provocação um ponto doloroso que me toca particularmente.
O lugar de onde escrevo não é apenas o de um estrangeiro grato pelo fértil desconforto em que a língua portuguesa me coloca, mas de um lugar – o “board” da “IPA” – onde há pouco menos de dois anos venho tentando representar as vozes de nossa região. As aspas obviamente se referem ao inglês que se tornou a língua franca de nossa instituição. O fato de dizermos – por boas intenções ou por sermos politicamente corretos – “Consejo” ou “API”, não muda muito as coisas, e acho que é esse o objetivo da intervenção de Ignácio, como uma ferroada.
Tendemos a perder de vista o fato de que nós, latino-americanos, somos, como membros, também proprietários da IPA. Mesmo que isso seja diluído, mesmo que recebamos diretrizes que vêm de Londres como se fossem ordens, ou que nos refiram aos regulamentos como textos sagrados, mesmo que a IPA esteja, às vezes, tão distante desse continente perdido, é fácil esquecer que ela também é nossa.
Sérgio Nick (SBPRJ) lembra o Bad English, uma invenção de Stefano Bolognini (ele mesmo, como a maioria de nós que falamos inglês, tendo sido educado em línguas românicas, um especialista nesse idioma). E é verdade que ele é – como Bolognini também disse – o verdadeiro idioma “oficial” da IPA; tão verdadeiro quanto o fato de que – apesar de termos quatro idiomas oficiais – o inglês é o idioma obrigatório de discussão, o que automaticamente dá aos anglo-saxões alguns pontos a mais de QI e capacidade de persuasão em cada controvérsia. É um Bad English, certamente (e voltarei a esse assunto), mas ainda assim segue sendo English.
A IPA tem contradições que Paim destaca claramente. Sua sede – nossa sede – fica em Londres, cujo fuso horário sincroniza nossas discussões virtuais. Demorou muito tempo para que essa instituição – nossa instituição – criasse um comitê que seria responsável pela discriminação e os preconceitos. E foi necessário um longo tempo de discussão e uma votação dividida para acrescentar a palavra “racismo” a esse nome (1).
Isso é um testemunho da diversidade de nossa comunidade internacional e dos conflitos que a permeiam, alguns dos quais claramente têm a ver com uma mentalidade colonial (que não se concentra apenas em colegas europeus), ou até mesmo com uma certa nostalgia imperial. Mas é também testemunho de um certo movimento em uma instituição – ainda que lenta e burocrática – que há algumas décadas foi capaz de apoiar o Instituto Göering na Alemanha nazista, supostamente para “salvar” a psicanálise (2).
É verdade que o comitê mencionado acima, como muitos outros na IPA, tem o inglês como idioma veicular, o que restringe a participação de muitos colegas que não falam nem mesmo um Bad English. E Paim tem razão em dizer isso. Em um mundo desigual, atravessado por conflitos de intensidade variável, seria ingenuidade pensar que essa situação não se repete na IPA.
II
Doze anos atrás – dando corpo à ideia e ao desejo de Leo Nosek (SBPSP) de criar uma nova revista latino-americana – propus que ela se chamasse Calibán, um nome que Paim resgata. Imagino que ele o resgata sob a mesma perspectiva que tínhamos na época: como um gesto irônico e anticolonial. Como vocês sabem, Calibán, na tragédia de Shakespeare “A Tempestade”, era um personagem monstruoso e deformado que mal conseguia balbuciar o inglês de Próspero. Calibán era um anagrama de canibal e representava a ideia do indígena latino-americano na Inglaterra do século XVI.
Seguindo a tradição de pensadores latino-americanos como Roberto Fernández Retamar, Hugo Achugar ou o poeta negro martinicano Aimé Césaire, batizar nossa revista de Calibán implicava um compromisso com uma forma de pensar autônoma e autóctone, livre e ousada (esse é um dos significados da palavra canibal), antropofágico no mais puro sentido brasileiro. Queríamos beber da tradição europeia – branca – e, ao mesmo tempo, nos destacar, aprender inglês e nos atrever a falar mal, nos identificarmos com o Calibán brutal e feio por meio de uma revista esteticamente bonita.
Mas não nos equivoquemos, é esse Calibán horrível imaginado pelos europeus que é o mesmo que bate, três séculos depois, na forma como Freud também imaginou a América Latina. Em uma carta a E. Weiss, falando de um paciente inatingível, ele escreveu: “pessoas como o Dr. A. – um paciente nada adequado para a análise livre – são enviadas para ultramar, digamos para a América do Sul, e lá deixadas para buscar e encontrar seu destino.” (3).
A última reunião presencial do Conselho ocorreu em Belgrado. Lá se discutiu algo que ressoa totalmente com o texto de Paim. Foi minha vez de dizer lá – em meu Bad English, igual ao de Calibán – três coisas relacionadas, creio eu, à sua dor transformada em indignação fértil. Duas delas tinham a ver com a língua. Por um lado, que não havia razão para justificar hoje, quando há duas vezes mais analistas de língua portuguesa do que de língua francesa e quase o mesmo número de analistas de língua alemã, que o português não seja a quinta língua oficial da IPA. (4)
O fato dessa proposta ter sido feita por alguém que não é do Brasil, um falante de espanhol, deve-se apenas ao reconhecimento de que, em nossa região, reclamamos do imperialismo do inglês, mas repetimos essa relação de dominação em relação aos nossos colegas de língua portuguesa, que estão sempre em desvantagem nas discussões latino-americanas. Nós impomos o espanhol – felizmente cada vez menos – da mesma forma que outros impõem o inglês.
Por outro lado, tive de dizer que o inglês não precisava ser a língua franca, nem da IPA nem do Board. Que já existiam tecnologias que tornavam possível – de acordo com a isegoría mencionada por Paim – ter um Conselho em que cada membro pudesse falar em sua própria língua. E que o que estava em jogo, no final das contas, e ligado à língua, era uma questão de poder.
A primeira das intervenções foi recebida com abertura e, com o timing institucional que uma mudança nos regulamentos exige, o português será um idioma oficial da IPA. A segunda, entretanto, encontrou mais resistência e argumentos conflitantes. A terceira intervenção foi ainda mais interessante, pois o inconsciente fez-se presente na reunião. Quase no final, quando era hora de tratar de um item da agenda sobre a África, ele simplesmente foi pulado… Perguntei então se não iríamos discutir a África e as perspectivas da psicanálise lá, e então – cientes do ato falho – refizemos nossos passos e discutimos o assunto. Contradições e tudo mais, foi criado um grupo para pesquisar o que existe na região, onde o Brasil – que se conecta com a África a partir de um lugar fraterno, em vez do laço colonial que une a África a Portugal, França ou Inglaterra – terá muito a dizer.
Se conto isso é para mostrar, em primeiro lugar, o que acontece nas discussões do Board, que entendo que devem ser transparentes, longe do sigilo que era comum nos velhos tempos. E também para mostrar que se trata de uma ágora, mas também de uma arena onde visões conflitantes são apresentadas e onde questões como as destacadas por Paim devem e podem ser ouvidas. Não apenas a partir de um respeito condescendente e sem consequências, mas de forma eficaz, ecoando testemunhos que são impossíveis de ignorar.
III
Vocês estão lendo-me agora em português, uma língua que me é familiar, uma língua que preciso justamente pela diferença que ela encarna. Mas estas palavras chegam até vocês por meio da tradução do castelhano (aquele idioma que, imposto a outros na unificação espanhola, usurpou o nome genérico de espanhol). Essa forma delicada de falar entre línguas me leva a um ponto central, talvez um ponto de virada na psicanálise que está por vir.
Do exterior, de nossa região mestiça e periférica, certamente podemos refrescar e renovar tanto a psicanálise quanto nossa instituição. Será uma tarefa coletiva e levará tempo, e talvez, por enquanto, devamos continuar a apelar para o Bad English. Só que “bad”, aqui, não deve ser lido como “ruim”, mas no sentido que Deleuze e Guattari, na trilha de Kafka, descobriram nas chamadas línguas menores (5), aquelas línguas capazes de desterritorializar as línguas supostamente maiores, de subvertê-las e de lhes dar um “coeficiente de subdesenvolvimento”. Em uma língua menor, o indivíduo está necessariamente articulado com o político, e lá o que importa são os “dispositivos coletivos de enunciação”.
Assim, o Bad English, entendido dessa forma, nada mais é do que um uso menor dentro de uma língua maior, onde a língua se torna diaspórica, se torna estranha e, portanto, abre espaço para o que está fora de qualquer língua oficial. E o que digo sobre a língua se aplica à psicanálise (6), letra por letra, quando deixamos de nos perder em querelas teóricas para assumir que também vivemos entre línguas teóricas.
É uma batalha política, ainda que também teórica. Trata-se de lutar não contra o inglês, mas contra a própria ideia de língua franca, seja ela grega, inglesa ou mandarim, e assumir que nossa língua comum é a da tradução. (7) Mas não uma tradução entendida como uma transferência ininterrupta de uma língua para outra, mas como uma operação em que falar em uma língua como a nossa – e sabemos que uma língua é também uma forma de pensar e dizer a psicanálise – mina a língua do outro, a descompleta. Na tradução, não se trata de restaurar um significado original, mas de desorientar a língua de chegada (8).
Assim como faz a mensagem que Paim – com justificável mal-estar – coloca em uma garrafa e a joga no mar.
Notas
(1) Nesse ponto, como em muitos outros, as federações latino-americanas – tanto a FEPAL quanto a FEBRAPSI – estão muito à frente da IPA no pensamento sobre o racismo estrutural.
(2) Com consequências na psicanálise brasileira, com o episódio Amilcar Lobo, analisado por Leão Cabernite, por sua vez analisado por Werner Kemper, um dos analistas do Instituto Göering… Felizmente, pudemos contar também com a coragem de Helena Besserman Vianna, e com o eco que suas palavras encontraram em Horacio Etchegoyen, para tornar pelo menos suportável parte dessa história sombria…
(3) “Problemas de la práctica psicoanalítica. Correspondência Sigmund Freud-Edoardo Weiss”, Gedisa, Barcelona, 179, p. 49, Barcelona, 179, p. 49. Também recomendo a leitura de “Freud and the non-Europeans”, do intelectual palestino Edward Said.
(4) Fiz essa sugestão em linha com meu compromisso com a comunidade de analistas brasileiros. E ela segue os esforços que estão sendo feitos por muitos colegas brasileiros – onde a presidência de Cláudio Eizirik e a vice-presidência de Sergio Nick e, antes dele, de Ana Maria Andrade de Azevedo foram fundamentais – para garantir que a língua portuguesa tenha uma presença maior, por exemplo, nos congressos da IPA.
(5) Para os autores, o alemão falado por Kafka, contaminado pelo iídiche, ou o inglês falado pelos negros nos Estados Unidos ou pelos irlandeses na Grã-Bretanha são línguas menores. Deleuze, G., Guattari, F., Kafka. Por una literatura menor, Era, CDMX, 1978.
(6) Horenstein, M., Psicoanálisis en lengua menor, Viento de fondo, Cba, 2015.
(7) Nos moldes de “Elogio de la traducción. Complicar el universal”, El cuenco de plata, Bs As, 2019.
(8) Berman, A., L’́épreuve de l’́étranger: Culture et traduction dans l`Allemagne romantique, Gallimard, Paris, 1995.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Tradução: Samantha Nigri (SBPRJ)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: língua franca, língua menor, bad English, tradução
Imagem: artista plástico Paulo Nazareth em cena do seu projeto Notícias da América
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Ensaio escrito originalmente em espanhol
Observatorio Psicoanalítico – OP 400/2023
Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo
Noticias de nuestro pequeño mundo
Mariano Horestein (APC)
Aun emocionado y admirado del coraje de Vinicius Jr, siento algún pudor de volver a traer noticias de nuestro pequeño mundo. Todos sabemos que existe un mundo mucho más interesante, más diverso y desafiante que el de nuestras instituciones. Y si hay una apuesta posible hacia el futuro -incluso para la supervivencia de nuestras instituciones- pasa por hacerlas más porosas hacia el mundo que habitamos, dejarnos interpelar, dejarnos enseñar.
I
A partir de la hospitalidad al extranjero que soy aquí, no he dejado de leer los debates publicados en OP. Si me atrevo a escribir hoy de nuevo es gracias al texto de Ignácio Paím Filho, que señala con lucidez y necesaria provocación un punto álgido que me toca particularmente.
El lugar desde el que escribo no es solo el del extranjero agradecido de la fértil incomodidad en que la lengua portuguesa me ubica, sino desde un lugar -el “board” de la “IPA”- en donde desde hace poco menos de dos años intento representar las voces de nuestra región.
Las comillas, obviamente, remiten al inglés que se ha convertido en la lingua franca de nuestra institución. Que digamos -por buenas intenciones o corrección política- “consejo” o “API” no cambia demasiado las cosas, y creo que a eso apunta la intervención de Ignácio como un aguijón.
Tendemos a perder de vista que los latinoamericanos somos, en tanto miembros, también propietarios de la IPA. Aunque eso se diluya, aunque recibamos directrices que vienen de Londres como si fueran órdenes o se nos remitiera a reglamentos como textos sagrados, aunque la IPA esté por momentos tan lejos de este continente perdido que sea fácil olvidar que es también nuestra.
Sérgio Nick (SBPRJ) recuerda al bad English, una ocurrencia de Stefano Bolognini (él mismo, como la mayor parte de quienes hablamos inglés habiendo sido culturizados en lenguas romances, un experto en ese idioma). Y es cierto que es ésa -como también dijo Bolognini- la verdadera lengua “oficial” en IPA; tan cierto como que -pese a tener cuatro lenguas oficiales- el inglés es la obligada lengua de discusión, lo que le da automáticamente a los anglosajones algunos puntos más de coeficiente intelectual y capacidad persuasiva en cada controversia.
Es bad English, por supuesto (y volveré sobre esto), pero sigue siendo English.
La IPA tiene contradicciones que Paím pone claramente de manifiesto. Su sede -nuestra sede- está en Londres, con cuyo huso horario sincronizamos nuestras discusiones virtuales. Le llevó mucho tiempo a esta institución -nuestra institución- conformar un comité que se encargara de la discriminación y los prejuicios. Y llevó mucho tiempo de discusión, y una votación dividida, agregar a ese nombre la palabra “racismo”. (1)
Esto es testimonio de la diversidad de nuestra comunidad internacional, y de los conflictos que la inervan, algunos de los cuales claramente tienen que ver con una mentalidad colonial (que no solamente anida solo en colegas europeos), o incluso cierta nostalgia imperial. Pero también es testimonio de cierto movimiento en una institución -aun lento y burocrático- que pocas décadas atrás fue capaz de apoyar al Instituto Göering en la Alemania nazi, supuestamente para “salvar” al psicoanálisis. (2)
Es cierto que el mencionado comité, como muchos otros en IPA, tiene al inglés como lengua vehicular, lo cual restringe la participación de muchos colegas que no hablan siquiera un bad English. Y Paím acierta en decirlo con todas las letras. En un mundo desigual, atravesado por conflictos de distinta intensidad, sería ingenuo pensar que esa situación no se replica dentro de IPA.
II
Doce años atrás -dándole cuerpo a la idea y la voluntad de Leo Nosek (SBPSP) de crear una nueva revista latinoamericana-, propuse que se llamara Calibán, un nombre que Paím rescata. Imagino que lo rescata desde la misma perspectiva que tuvimos entonces: como un gesto irónico y anticolonial. Como saben, Calibán, en la tragedia La Tempestad, de Shakespeare, era un personaje monstruoso, deforme, que apenas lograba balbucear el inglés de Próspero. Calibán era un anagrama de caníbal, y representaba la idea que tenían del indígena latinoamericano en la Inglaterra del siglo XVI.
En la tradición de pensadores latinoamericanos como Roberto Fernández Retamar o Hugo Achugar o el poeta negro de la Martinica Aimé Césaire, nominar Calibán a nuestra revista implicaba una apuesta por un pensamiento autónomo y autóctono, libre y osado (ése es uno de los sentidos de la palabra caníbal), antropófago en el más puro sentido brasileño. Queríamos beber de la tradición europea -blanca- y a la vez despegarnos, aprender inglés y atrevernos a hablarlo mal, identificarnos con el brutal y feo Calibán a través de una revista estéticamente hermosa.
Pero no nos equivoquemos, es aquel Calibán horroroso imaginado por europeos el mismo que late, tres siglos después, en el modo en que también Freud imaginaba a Latinoamérica. En una carta a E. Weiss, hablando de un paciente inabordable, escribía: “a gente como el Dr. A. -un paciente nada adecuado para el libre análisis- se la embarca para ultramar, digamos para Suramérica, y se la deja buscar y hallar allá su destino”. (3)
La última reunión presencial del Board tuvo lugar en Belgrado. Allí se discutió algo que resuena de lleno con el texto de Paím. Me tocó decir allí -en mi bad English, el mismo de Calibán- tres cosas relacionadas -creo yo- con su dolor convertido en indignación fértil. Dos tenían que ver con la lengua. Por un lado, que no había ninguna razón que justificara hoy, cuando los analistas de habla portuguesa son el doble que los de habla francesa y casi tantos como los de lengua alemana, que el portugués no sea la quinta lengua oficial de IPA. (4)
Que esa propuesta haya sido enunciada por alguien que no es de Brasil, hispanoparlante, no se debe sino al reconocimiento de que, puertas adentro de nuestra región, nos quejamos del imperialismo del inglés pero repetimos esa relación de dominación frente a los colegas lusoparlantes, siempre en inferioridad de condiciones en las discusiones latinoamericanas. Imponemos el español -por suerte cada vez menos-, del mismo modo en que otros imponen el inglés.
Por otro lado, me tocó decir que el inglés no tenía por qué ser la lingua franca, ni de IPA ni del Board. Que ya existían tecnologías que hacían posible -en sintonía con la isegoría que cita Paím- un Board donde cada miembro podría hablar en su propia lengua. Y que lo que se jugaba, en el fondo y ligado a la lengua, era un asunto de poder.
La primera de las intervenciones fue recibida con apertura y -con los tiempos institucionales que un cambio en los reglamentos precisa- el portugués será una lengua oficial de IPA. La segunda, sin embargo, encontró más resistencias y argumentos encontrados. La tercera intervención fue interesante, pues el inconciente se hizo presente en la reunión. Casi al finalizar, y cuando tocaba tratar un punto de la agenda relativo a África, éste fue lisa y llanamente salteado… Pregunté entonces si no íbamos a discutir sobre África y las perspectivas del psicoanálisis allí, y entonces -percatados del fallido- volvimos sobre nuestros pasos y discutimos al respecto. Con contradicciones y todo, se constituyó un grupo para relevar lo existente en la región, donde Brasil -quien se conecta con África desde un lugar fraterno, en vez del lazo con reminiscencias coloniales que une a África con Portugal, Francia o Inglaterra- tendrá mucho por decir.
Si cuento esto es para mostrar, en primer lugar, lo que sucede en las discusiones del Board, que entiendo que deben ser transparentes, lejos del secretismo que en antiguas épocas era habitual. Y también para evidenciar que se trata de un ágora pero también de una palestra, de una arena donde se juegan visiones encontradas, y donde cuestiones como las que pone de relieve Paím deben y pueden ser oídas. No solo desde un respeto condescendiente y sin consecuencias, sino de un modo eficaz, que se haga eco de testimonios imposibles de desoír.
III
Me leen ahora en portugués, una lengua familiar para mí, una lengua que preciso justamente por la diferencia que encarna. Pero estas palabras llegan a ustedes a través de la traducción del castellano (esa lengua que, impuesta sobre otras en la unificación española, usurpó el nombre genérico de español). Este delicado hablar entre lenguas me lleva a un punto central, quizás un punto de inflexión en el psicoanálisis por venir.
Desde ultramar, desde nuestra región mestiza y periférica, podremos seguramente refrescar y renovar tanto al psicoanálisis como a nuestra institución. Será una tarea colectiva y llevará tiempo, y quizás por el momento debamos seguir apelando al bad English. Solo que bad, aquí, no debe ser leído como “malo”, sino en el sentido que Deleuze y Guattari, tras la pista de Kafka, descubrieron en las llamadas lenguas menores (5), esas lenguas capaces de desterritorializar a lenguas supuestamente mayores, de subvertirlas y aportarles un “coeficiente de subdesarrollo”. En una lengua menor lo individual se articula necesariamente con lo político, y allí son los “dispositivos colectivos de enunciación” los que importan.
Entonces el bad English, así entendido, no es sino hacer un uso menor dentro de una lengua mayor, donde el lenguaje se hace diaspórico, se extraña y le hace así lugar a lo que queda por fuera de cualquier lengua oficial. Y lo que digo de la lengua se aplica al psicoanálisis (6), letra por letra, cuando dejamos de extraviarnos en querellas teóricas para asumir que vivimos entre lenguas teóricas también.
Se trata de una batalla política, aunque también teórica. Se trata de combatir no al inglés, sino la idea misma de lingua franca, se trate del griego, el inglés o el chino mandarín, y asumir que nuestra lengua común es la de la traducción (7). Pero no una traducción entendida como trasvasamiento sin fisuras de una lengua a otra, sino en tanto operatoria donde el hablar en una lengua como la nuestra -y sabemos que una lengua es también un modo de pensar y decir el psicoanálisis- mine la lengua del otro, la descomplete. En la traducción se trata no de restaurar un sentido original sino de desorientar la lengua de llegada. (8)
Tal como lo hace el mensaje que Paím -con justificado malestar- encierra en una botella y lanza al mar.
(1) En este punto, como en tantos otros, las federaciones latinoamericanas -tanto FEPAL como FEBRAPSI- están muy por delante de IPA en cuanto a la reflexión acerca del racismo estructural.
(2) Con consecuencias en el psicoanálisis brasileño, con el episodio Amílcar Lobo, analizado por Leao Cabernite, analizado a su vez por Werner Kemper, uno de los analistas del Instituto Göering… Felizmente, pudimos contar también con el coraje de Helena Besserman Vianna, y el eco que sus palabras encontraron en Horacio Etchegoyen, para que algo de esa oscura historia sea al menos soportable.
(3) “Problemas de la práctica psicoanalítica. Correspondencia Sigmund Freud-Edoardo Weiss”, Gedisa, Barcelona, 179, p. 49. Recomiendo también leer “Freud y los no europeos”, del intelectual palestino Edward Said.
(4) Formulé esta sugerencia en línea con el compromiso asumido por mi parte ante la comunidad de analistas brasileños. Y sigue los esfuerzos que vienen haciendo muchos colegas brasileños – donde la presidencia de Cláudio Eizirik y la vicepresidencia de Sergio Nick y antes Ana Maria Andrade de Azevedo han sido claves- para que el portugués tenga mayor presencia, por empezar en los congresos de IPA.
(5) Para los autores, el alemán hablado por Kafka, contaminado por el yiddish, o el inglés hablado por los negros en Estados Unidos o los irlandeses en Gran Bretaña son lenguas menores. Deleuze, G., Guattari, F., Kafka. Por una literatura menor, Era, CDMX, 1978.
(6) Horenstein, M., Psicoanálisis en lengua menor, Viento de fondo, Cba, 2015.
(7) En la línea de lo planteado por Barbara Cassin en “Elogio de la traducción. Complicar el universal”, El cuenco de plata, Bs As, 2019.
(8) Berman, A., L´épreuve de l´étranger: Cuture et traduction dans l`Allemagne romantique, Gallimard, Paris, 1995.
(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores)
Imagen: el artista Paulo Nazareth en una escena de su proyecto “Noticias de América”
Categoría: Instituciones psicoanalíticas
Palabras clave: lingua franca- lingua minor-bad English- translation
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