Observatório Psicanalítico – OP 401/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

O Racismo e Nosotros: uma reflexão sobre o tema e as realizações da FEBRAPSI

Conselho Diretor da FEBRAPSI

A repercussão dos atos direcionados a Vinicius Junior em Valência (Espanha) recoloca o racismo como uma questão da qual o mundo não pode mais se omitir e deixar de se ocupar. Acentuamos que foi a repercussão e não os atos em si, pois estes são diários e onipresentes; percebidos, conscientes, elaborados ou não!

De tempos em tempos, somos sensibilizados pela foto icônica da menina Ruby Bridges sendo escoltada por policiais para poder ir à escola que era só para brancos em Louisiana; lembramos da prisão de Rosa Parks por se negar a ceder seu lugar no ônibus em Montgomery; somos tocados pelos discursos e consequente assassinato de Martin Luther King Jr; a imagem, o desesperante “I Can´t Breathe” e a morte de George Floyd nos dão agonia; o ataque a Vinicius Junior, aquele que nos defendeu na Copa, nos revolta.

Entretanto, no nosso dia a dia, em nossas escolas, aeroportos, comunidades, supermercados, estádios, instituições e famílias… convivemos, de maneira mais ou menos explícita , com os mesmos fatos/atos; não raro, com bovino silêncio. Sem falar nos trezentos anos de escravatura não tratados com a relevância e o assombro com que deveriam.  

Freud, em entrevista para Viereck, quando questionado sobre a tendência da psicanálise buscar compreender todos os fenômenos e se isso não levaria a um “Tout comprendre c’est tout pardonner”, foi enfático: “A psicanálise não apenas nos ensina o que temos que suportar, ela também ensina o que temos que evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância do mal não é, de maneira nenhuma, uma consequência do conhecimento”. É um convite/determinação para irmos além do retórico “não sou racista”, mas sim, construir uma prática antirracista.

“Nosotros” do título não é uma simples referência ao acontecido no país que teve sua Guernica, mas a utilização da riqueza e da complexidade das línguas para sinalizar que em nós existem outros, sabedores ou não, somos atravessados, constituídos, carregamos e, muitas vezes, reproduzimos o racismo estrutural da nossa sociedade. O “Estranho” acontecimento no estádio, como nos ensina o conceito freudiano, também nos é familiar.

Ao longo dos últimos anos, com evidente atraso, incialmente através de alguns psicanalistas, mas progressivamente assumido pelas nossas instituições, nunca sem resistências, a FEBRAPSI e suas federadas começaram a se ocupar de maneira orgânica das pungentes questões, até então ignoradas pela maioria. Os movimentos negros, LGBTQIA+, feministas e demais minorias passaram a ter voz e repercussão nas nossas Instituições; a violência da desigualdade, da discriminação, da criminalização, da misoginia, do racismo têm hoje pensadores implicados que nos convidam, instigam e não permitem que estas questões sejam relegadas a um segundo plano. Inclusive, lembrando-nos que já estavam presentes em vários pontos da obra freudiana.  

A criação da Diretoria de Comunidade e Cultura pela FEBRAPSI e os seus equivalentes departamentos nas Sociedades/Federadas, ao longo dos últimos anos/gestões, criou/desenvolveu uma série de frentes para pensar, elaborar e trabalhar nas necessárias transformações ligadas a estas questões. Entre outras atividades, formou-se uma “Comissão de Estudos sobre o Racismo e Práticas Antirracistas” que há alguns anos vem realizando eventos anuais e estimulando o estudo no meio psicanalítico.

Nessa esteira, o “Observatório Psicanalítico”, um jornal eletrônico com Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo, e seu desdobramento, o podcast “Mirante”, ajudam no processo de difusão, alfabetização, elaboração …; a temática é abordada de maneira sistemática pelo projeto; inclusive com uma série de seis episódios que versaram especificamente sobre as questões associadas ao racismo.

O movimento chegou aos Institutos, a estrutura responsável pela formação de novos analistas. Já temos três Sociedades – SBPRJ, SBPdePA e SBPRP – com programas de inclusão, com bolsas para negros, povos originários e refugiados. Estimulando e inspirando outras federadas.

O SOS Brasil, um projeto iniciado na pandemia para atender crianças, adolescentes e famílias, e a Comissão de Infância e Adolescência, ambas ligadas à FEBRAPSI, preparam um evento sobre violência nas escolas. Estuda-se a ideia de como implementar práticas restaurativas, em um processo circular retributivo a partir do olhar para as relações humanas, com a corresponsabilidade do grupo e a construção de reparações.

Todos estes projetos – “Observatório Psicanalítico”, “Projetos de Inclusão” e o “SOS Brasil” – foram reconhecidos em recente premiação da IPA.

A FEBRAPSI isenta os bolsistas das taxas de inscrições em seus eventos e estimula a distribuição de mais bolsas pelas federadas a negros, povos originários, quilombolas e refugiados que se interessem por psicanálise. Nosso 5o. Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa (CPLP) nunca teve tanto espaço sobre o tema como agora. 

Também discutiremos em Assembleia a maneira pela qual cooperaremos financeiramente com todos estes programas de inclusão.

São movimentos que se articulam e se retroalimentam, não são isolados, bissextos, com períodos de validades limitados ou movido por pontuais pressões do momento. São sistemáticos, em franco desenvolvimento e, como sempre nestes casos, com enfrentamentos e resistências. Provavelmente, os dois últimos Congressos de Psicanálise em Língua Portuguesa – o quarto, em Cabo Verde, com o tema “Rotas da Escravidão” e o quinto, em Salvador, “Escravidão e Liberdade: travessias do corpo e da alma” –, realizados conjuntamente com a Sociedade Portuguesa de Psicanálise e vários colegas dos países africanos lusófonos, sejam os exemplos mais emblemáticos do engajamento, determinação e coragem para enfrentar uma questão silenciada por décadas.

O evento realizado em Salvador, no final de abril, num modelo híbrido, através do qual colegas de Portugal e, principalmente, da África puderam participar, condensou tudo que estamos produzindo: os avanços, elaborações, insights e, também, a imensidão que precisa ser desterrada, ganhar voz, ser decodificada, ressignificada, elaborada, reparada… 

Tudo é pouco e nada será tudo e definitivo quando abordamos crimes contra a humanidade que seguem jogando a sombra do terror nas gerações futuras.

Como habitual, a maioria dos participantes eram brancos; entretanto, a composição das mesas trouxe algo muito mais próximo da equidade que se deve buscar na nossa sociedade. O racismo estrutural e o pacto da branquitude foram denunciados, questionados. Os debates foram intensos, o tom nem sempre foi de veludo. Poderiam ser? Não! 

Entendemos que em tema tão sensível não cabe a ninguém, a priori, estabelecer a maneira, o tom e o conteúdo a ser utilizado.

Todos ali eram implicados de alguma forma com a temática; porém, não existe equivalência entre histórias tão distintas. Muitos sentiram algumas inferências como excessivas; outros tantos, incompreendidos em questões tão caras e evidentes. Novamente, não cabe paralelos entre os desconfortos gerados em discussões em ambiente democrático, protegidos contra a violência quando comparado com os sequestros de sua terra e a desumanização. A sombra deste passado segue recaindo sobre os corpos negros através do racismo estrutural. O Congresso evidenciou o quanto ainda precisamos avançar na compreensão, no desenvolvimento e implementação de práticas antirracistas na sociedade de maneira geral e, também, entre nosotros.  

Em vários momentos difíceis, a voz dos mais jovens, muitos bolsistas, deram o norte: “falta estudo sobre o tema, já temos muito conhecimento disponível” (um convite é sempre mais eficaz do que uma acusação de ignorância); “precisamos desmoralizar a questão” (a firmeza da posição, não deve ser confundida com um permanente julgamento), “estou feliz por estar aqui podendo falar” (um estudante Moçambicano da UNILAB, como quem convoca para o cuidado/importância com a continuidade dos movimentos).

Enfrentar, refletir sobre o clima tenso que surge no ambiente institucional pela dimensão histórica que perpassa a todos, revendo lugares fixos impostos; mergulhar na história das desigualdades; questionar certas criações discursivas sobre raça, valores e comportamentos que reforçam o racismo e mantém privilégios, são imperativos. A FEBRAPSI vem sustentando os conflitos ao longo das gestões, com as várias complexidades inerentes ao campo psicanalítico, social e político. Ressonâncias dessas ações afirmativas chegam com muitos ruídos, por vezes, com dissociações, resistências e negações.

Simbolicamente, para não perder de vista a especificidade que nos une, Freud, sobre outras questões mas com pertinente validade, nos admoesta que, quando nos deparamos com questões difíceis/represadas não podemos/devemos mandá-las de volta ao inferno sem fazer nenhuma pergunta; em outro momento, “em contraste com o que ordinariamente é válido no mundo real, as pessoas preferem satisfazer-se com um único fator causativo”. Estamos enfrentando uma questão complexa, ela não se resolverá nem “in absentia”, nem “in effigie”, mas sim na presença de todos “nosotros”.

Para se enfrentar estas questões, precisamos nos unir. Afinal, “O abismo não nos divide. O abismo nos circunda”, assim termina “Autotomia”, de Wislawa Sczymborska; assim como nosotros, as holoturias do poema, apresentam:

“Em uma margem a morte, na outra a vida.
Aqui o desespero, lá o alento. (…)

Morrer só o necessário, sem exceder a medida.
Regenerar quanto for preciso da parte que restou. (…)

Aqui o coração pesado, ali o non omnis moriar/não morrer demais (…)”

A FEBRAPSI, como uma casa da psicanálise, manterá/sustentará/estimulará a criação de espaços de reflexão; entende que é necessário ser continente sem ser complacente com eventuais excessos/ignorâncias inerentes ao processo; o trabalho de transformação é árduo, como bem sabemos na nossa prática clínica. Não queimar caravelas e pontes para os que seguem abertos a escutar, conversar e pensar as questões que evolvem o racismo é fundamental.

Na entrevista já citada, quando era abordada a questão do crescente antissemitismo, Freud respondeu: “nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza; mas com frequência são também a fonte de nossa força”. É uma frase inspiradora para todos. Ao fim, o entrevistador faz a seguinte descrição: “apesar da sua intransigente integridade, Freud é a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa a sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade!”

Temos modelos, teoria, disposição, decisão … para seguirmos com os necessários enfrentamentos. Seria fácil se, igualmente, não tivéssemos ambiguidades. Não podemos ignorar que “o impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós. A morte é a companheira do amor. Juntos eles regem o mundo”.

Avancemos!

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Vidas Negras Importam; Instituições Psicanalíticas 

Palavras-chave: Inclusão, racismo, práticas antirracista, preconceito, Febrapsi

Imagem: Lorraine O’Grady que “por  quase meio século, produziu um profundo corpo de arte e escrita que avalia e contesta as lógicas de anti-negritude, colonialidade e extração que sustentam as instituições culturais”, veja a matéria https://www.artequeacontece.com.br/brooklyn-museum-reabre-com-significativa-exposicao-sobre-o-trabalho-lorraine-ogrady/

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Tags: FEBRAPSI | inclusão | práticas antirracista | preconceito | Racismo
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