Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Reflexões pós 5° CPLP – Salvador/abril 2023
Comissão Ubuntu (SBPdePA)
Coordenação do Grupo de Estudos Colonialismo, Racismo e Desigualdade (SBPdePA)
Muito se tem falado sobre as repercussões e desdobramentos do recente Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa (CPLP), cujo tema foi “Escravidão e Liberdade – Travessias do Corpo e da Alma”, evento que mexeu vivamente com seus participantes.
O Congresso reuniu mais de 300 inscritos, abrangendo portugueses, africanos e brasileiros (de forma presencial e online). Consideramos importante prosseguir a discussão que traz aprendizados, ensinamentos e reflexões sobre racismo e colonialismo, temas muito centrais para a Comissão Ubuntu e para o Grupo de Estudos Colonialismo, Racismo e desigualdade da SBPdePA.
Do ano de sua criação, em 2005, para cá, principalmente a partir de Cabo Verde, o CPLP trilhou na direção de pensarmos as feridas do racismo que seguem sangrando na atualidade. Em Salvador, houve uma expressiva participação de colegas negros da África e do Brasil. Eloá Bittencourt (SBPRJ e DCC-Febrapsi), juntamente com sua equipe e com a Diretoria da Federação, pôde dar espaço para falas potentes e doloridas.
Entrar em contato com o racismo, inevitavelmente, dói muito e nos coloca mais conscientes das enormes desigualdades e injustiças a que estão expostos os povos negro e indígena em nosso país. Sabemos que temos também o preconceito e a discriminação contra os pobres, os ribeirinhos, os nordestinos (vide o vereador de Caxias do Sul com xenofobia aos trabalhadores baianos submetidos ao trabalho escravo em vinícolas do RS), e outros.
Mas no 5o. CPLP, eram colegas brancos e negros que estavam juntos por três dias e os temas do racismo e do privilégio branco eram previsíveis e esperados. Ao comentarem sobre o CPLP no OP, colegas usaram palavras e frases como: tenso; vivo; confrontos inevitáveis; mal-entendidos x mal-estares; território necessário, imprescindível; luta pioneira que desperta paixões das mais variadas naturezas; não existem elaborações fáceis para as questões do racismo; hospitalidade x hostilidade; não procurar a eliminação de conflitos mas sua explicitação; contato com a ancestralidade branca e escravagista; nossas defesas perpetuam o modelo colonizador e colonizado; através de um convívio fraterno e respeitoso poderemos combater o racismo; necessidade de implantar políticas de ações afirmativas nas instituições psicanalíticas.
Marilsa Taffarel (SBPSP) nos traz Grada Kilomba: “O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre. Por vezes infecta e outras vezes sangra.”
Em nossa experiência quanto à implementação de ações afirmativas na SBPdePA, verificamos que, além da presença do silêncio ou do desejo manifesto de que esse tema seja silenciado e apagado da Instituição, a maneira e a dimensão do quanto a ferida infecta, dói ou sangra, é muito maior no colega negro do que no branco, mesmo que sensível. Nessa área não estamos no mesmo patamar de dor. Não temos a mesma história secular e traumática de descendermos de escravizados retiradas com violência da África. Não sofremos pressões cotidianas, desde nosso nascimento, para nos embranquecermos, para termos muitíssimo cuidado nas ruas para voltarmos vivos para casa, para não sonharmos com lugares que seriam dos brancos, sendo a psicanálise um deles. Como brancos vivemos por séculos embalados em berço esplêndido sob a cantilena falsa e mentirosa de nossa democracia racial e de que nossos lugares seriam naturais e absolutamente meritocráticos, bem como a acumulação de bens materiais e simbólicos como a educação.
Assim, quando a dor visceral de colegas negros emerge em pranto ou em falas que podem soar hostis, seria importante se pudéssemos nos perguntar o que fazer, como estar junto, como seguirmos juntos? Somos desafiados a lidar com o impacto sem desejar seu silenciamento, reconhecendo muitas vezes nosso despreparo para questões tão novas e das quais somos ainda ignorantes ou meros iniciantes.
No CPLP de Salvador, vivemos um fenômeno grupal onde habitavam no mesmo espaço, e ao mesmo tempo, representações ou não representações externas e internas do Império e das Colônias, do colonizador e do colonizado, do senhor e do escravizado. Caldo de cultura efervescente no qual o traumático tem potencial de ser atualizado in loco.
Como psicanalistas somos convocados, desde Freud, a pensar e fazer trabalhar esse mal-estar e os conflitos. Temos o desafio de amadurecer nossas possibilidades de debate e de habitarmos o mesmo espaço e ao mesmo tempo; de transformar estruturas fechadas, rígidas e excludentes em nós mesmos e em nossas instituições em estruturas mais permeáveis e democráticas. Para Bion, áreas de turbulência e dor fazem parte do trabalho psíquico, podendo levar à mudança catastrófica a partir da experiência emocional vivida, um estado que tanto pode desobstruir caminhos como colapsar e obstruir.
Esperamos que as vivências do 5° CPLP possam nos levar a avanços e a novos caminhos, sinalizando que sofrimentos e apelos que sempre estiveram de fora de nossos consultórios e dos congressos possam finalmente adentrar.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Vidas Negras Importam; Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: CPLP, Conflitos, Racismo, Experiência emocional, Ações Afirmativas
Imagem: Vidas negras importam do movimento ativista internacional protestando contra o racismo e lutando pela justiça
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