Observatório Psicanalítico – OP 393/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

De boas intenções, o inferno está cheio

Ludmila Frateschi (SBPSP) 

Frequento a Cracolândia da região da Luz, em São Paulo, desde abril de 2022, uma vez por semana. Ouvi muitas vezes, de muitas bocas (e agora passei a repetir) que “não é para principiantes”. Para além da frase de efeito, encontra-se ali uma concentração intensíssima de fenômenos humanos, tornando aquele um lugar de difícil compreensão. Assim, escrever sobre o território mostra-se uma tarefa árdua: nada dá conta, tem sempre uma ponta solta que, quando puxada, abre um mundo todo. Um pouco como escrever sobre o inconsciente.

A Cracolândia é um cenário muitas vezes descrito como “de guerra”. Qual guerra? Parece haver mesmo uma, primeira, de pessoas tentando sobreviver. Uma espécie de cruzada contra todo tipo de intempéries e violências. Gente que aguenta sol, chuva, frio, calor, fome, sede, doença, machucado. Que batalha para conseguir e manter consigo recursos mínimos (absorvente, remédio, cobertor, barraca, roupa limpa, livro, água). Que toma gás lacrimogênio, empurrão de cassetete e bala de borracha todos os dias e muitas das noites, sem poder sentar nem para comer, sem poder dormir. “Essa gente” sobrevive e não abandona a lógica da aglomeração no Centro. Deve haver razão para isso. Diz a psicanálise que há uma regra na economia psíquica: a pessoa faz sempre o melhor que pode com os recursos que tem.

Há uma outra guerra, paralela e histórica, pelo espaço. Briga-se pelo direito de ocupar a região central da cidade. Nela, algumas palavras ganham sentido bem específico. “Revitalizar”, por exemplo, passa a querer dizer que o que existe lá hoje não é vida e que, assim, precisa ser substituído por empreendimentos caros e lucrativos e um modelo de bairro “contemporâneo”, em que a lógica privatista e de condomínios impera. 

Para funcionar, a revitalização exige remoção. Decide-se que não cabem mais ali as pessoas que escolheram aquele lugar para viver e construir laços – elas, porém, sabem que, deslocadas para longe, perderão também acesso aos recursos, serviços e equipamentos que a cidade ali concentra, em decorrência de como vem sendo seu processo de urbanização. Resistem.

Há ainda uma suposta ou fictícia guerra às drogas. Uma espécie de espetáculo, reencenado diariamente, em que a polícia entra na cena aberta de uso de drogas (o chamado “fluxo”, que nada mais é que uma aglomeração de pessoas que comem, dormem, conversam, trocam e usam drogas juntas), como se ali fosse o principal ponto de comércio de substâncias da cidade, como se ali estivessem os grandes traficantes e a grande circulação de dinheiro. Há apreensões, de quantidades sempre irrisórias se considerarmos o volume de drogas e de dinheiro movimentados pelo tráfico na cidade e no país. Há detenções, em sua maioria de usuários e pequenos traficantes, às vezes de alguém com um papel médio na hierarquia do crime organizado. No geral, no entanto, tudo segue rigorosamente igual, há anos. As violações de direitos humanos por abuso das forças policiais são descritas periodicamente pelos órgãos de defesa e pela militância de movimentos sociais, denúncias são feitas nos órgãos cabíveis, mas a violência segue, cotidiana e infinita.

Há, por fim, uma guerra moral. Mais complexa que todas as outras, ela se dá explicita ou sorrateiramente, é sanguinária e ininterrupta, exemplo pungente de como agem o racismo e o colonialismo que nos constituem como povo. Os mais vulneráveis são pretos, que compõem a maioria da população em situação de rua e também, na rua, são os mais submetidos à violência do Estado. Mas, mais que isso, as propostas de “solução” que se lhes oferecem, venham de que agentes forem, são muitas vezes marcadas por uma postura salvacionista, que não leva em consideração suas vozes, valores e elementos culturais, e que os reduz ora a bandidos ora a doentes mentais, em qualquer dos casos utilizando essa redução como argumento de que eles devem ser retirados do convívio social ou ao menos das vistas da “população de bem”. Aqui também a psicanálise (ao menos aquela que não se permite ser usada pela ideologia dominante e se faz questão sempre) teria uma contribuição: torcer cada discurso ou sentença que se diz como verdade absoluta sobre aquela região ou “aquela gente” e sustentar os vieses de complexidade que acabam por desmontar os moralismos.

Digo tudo isso agora e neste espaço porque, com a troca do Governo Estadual em São Paulo, estão de novo em pauta as “soluções” para a Cracolândia. Nas narrativas que ocupam os noticiários, o discurso da nova gestão é o de uma abordagem menos violenta e mais inteligente das questões de segurança, bem como um tratamento mais eficiente dos usuários de crack, descritos como doentes mentais sem autonomia que precisam ser salvos.

Concretamente, as operações da Polícia Civil substituíram as detenções pelo registro fotográfico dos usuários na cena aberta de uso, uma espécie de fichamento sem queixa. Já o principal serviço de referência da região, o CRATOD (Centro de referência de álcool, tabaco e outras drogas) foi substituído pelo novo “Hub de cuidados em crack e outras drogas”. A ideia é de ampliar os atendimentos e encaminhamentos de usuários de drogas para outros serviços, de uma forma mais privatizada: o mecanismo não existia antes no SUS e na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a gestão do Hub é feita por uma organização social (OS) terceirizada, a SPDM, que passa a ser responsável também por todas as contratações – não há servidores públicos entre os trabalhadores. A eficiência é medida pelo número de atendimentos e encaminhamentos, e os encaminhamentos para internação são feitos em sua maioria para comunidades terapêuticas de cunho religioso. Cabe dizer que a direção da SPDM tem, segundo vem sendo publicado na mídia, estreita relação com tais comunidades.

Não é simples questionar tal modelo. A presença evangélica na região é tão crescente como no resto do país e é preciso tomar cuidado em adotar uma postura preconceituosa quanto a isso, reproduzindo o universalismo colonial. É mais fácil para nós, da elite branca (impossível não me incluir), tolerar a cultura religiosa de católicos e judeus, tomar as religiões de matriz africana como um folclore curioso com o qual flertamos e questionar a fé e as práticas de evangélicos e muçulmanos como bárbaras. A experiência mais atenta no “fluxo” mostra, no entanto, que há algo nas canções de louvor, por exemplo, que nomeia e simboliza dores com uma potência de elaboração que outras manifestações culturais não alcançam. Há algo na religião, como sempre houve em qualquer uma, que conecta, religa, e por isso reconhecê-la pode ser importante no trabalho com quem perdeu muitos de seus vínculos. Há, assim, potencial de acolhimento nas igrejas evangélicas e em suas comunidades – tanto quanto em quaisquer outras. E elas estão, há tempos, onde o Estado não está, como é comum na história das religiões, em especial em nosso país.

A questão é outra: haver uma presença tão central de organizações privadas e igrejas na gestão de um serviço que deveria ser público e universal. Há uma mistura entre o movimento privatista da saúde e a suspensão da laicidade do Estado que deveria chamar nossa atenção. Além disso, vai-se fortalecendo um discurso, que usa a premissa de que as drogas são antes uma questão de saúde que de segurança (princípio que tenderíamos a achar razoável), mas com uma confusão de fundo: doentes mentais são tão perigosos como criminosos, muitas vezes são criminosos por serem doentes mentais, e então de qualquer modo é preciso tirá-los do convívio público e, principalmente, das regiões da cidade que deveriam ser limpas, lindas e ricas. Trata-se, assim, do uso do poder religioso aliado ao poder médico como arma política e de Estado para garantir um lugar específico para as populações “indesejadas”, fora das vistas, com o suposto “fazer o bem”, “tratar” e “cuidar” como disfarce.

O bolsonarismo não acabou com a eleição de Lula. Ele segue muito forte no país e nos governadores eleitos com suas bandeiras, talvez mais sorrateiro e palatável em sua forma aparentemente civilizada, mas ainda muito violento, higienista, manicolonialista em seus efeitos.

*manicolonialista é expressão cunhada por Emiliano de Camargo David (@ammapsique).

**Minha inserção na Cracolândia é pelo projeto Teto, Trampo e Tratamento (@tetotrampotratamento),

idealizado e coordenado por Flávio Falcone, e pelo Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria (HCFMUSP), onde sou voluntária.

***No último final de semana (21 a 23 de abril) ocorreu na Luz o seminário Cracolândia em Emergência (@cracolandiaememergencia), no qual muitas organizações estavam reunidas debatendo alternativas mais humanitárias e eficientes.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: redução de danos, políticas públicas, vínculo, cidade, psicanálise

Imagem: Luca Meola (@lucameola1977)

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Tags: cidade | políticas públicas | Psicanálise | redução de danos | Vínculo
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