Observatório Psicanalítico – Editorial abril/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Sódepois 36

Abril de 2023

Carlos Drummond de Andrade (1902–1987), em “Mundo Grande”, nos lembra: “Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem sem que ele estale (…)”. 

Mais à frente, o poeta diz: “(…) meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor.”

As palavras de Drumond nos inspiraram em nosso manuscrito “Observatório Psicanalítico, o mar e as ilhas que trazem notícias do mundo”, apresentado no V Congresso de Psicanálise da Língua Portuguesa, “Escravidão e Liberdade: travessias do Corpo e da Alma”, ocorrido no fim do mês de abril durante os dias 27, 28 e 29, na cidade de Salvador. A mesa em que participamos teve como estímulo, sugerido pela Comissão Científica, a frase “A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco”, do poema “O outro” também do nosso escritor mineiro.

Falamos sobre o nascedouro do OP, em 2017, como uma iniciativa clínico-política para que psicanalistas pudessem pensar acontecimentos sociais e institucionais da época em que vivemos. Seguimos  descrevendo nosso dispositivo, que “ao longo desse tempo, vem criando possibilidades, desvios e variações do saber psicanalítico, entrelaçados com a nossa cultura. Em qual ilha, em qual continente atracar as inquietudes dos corações andarilhos em um mundo movediço? Incertezas, conflitos crescentes, intolerâncias, racismos, migrações forçadas. Guerras que persistem e nos ameaçam. Barcos precários que se lançam ao mar, em número cada vez maior, e que com seus remos marcam nas águas uma travessia de vulnerabilidade e angústia. Seja em alto mar ou com os pés no chão, tentamos não naufragar diante do que nos assombra. 

Tal como um porto, o Observatório Psicanalítico tem buscado se oferecer como um lugar de pouso para nossos navios que, de diferentes rotas, chegam carregando as mais diversas dores”, conforme pudemos testemunhar nesse Congresso, em especial na mesa que participamos. Ao nosso lado também estavam os alunos Jandira Francisco Domingos e Sirádio Hélio Dialho e a prof. Elizia Cristina Ferreira, do Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), e Rita Gameiro, da Sociedade Psicanalítica de Portugal (SPP). A coordenação dos trabalhos foi de Sonia Soares Coelho (SPP). As contribuições da plateia foram ricas e nos trouxeram a informação de que o Ministério da Educação “deixou às minguas” esse Campus, localizado no município de São Francisco do Conde (BA), a 84 km de Salvador. A falta de compromisso financeiro durante o mandato do governo anterior com essa universidade federal, vem provocando todo tipo de sofrimento aos alunos, inclusive psicológico. O Campus atua na formação de estudantes brasileiros – que ingressam por meio do SISU, Programa que seleciona estudantes para universidades e instituições públicas de ensino superior do Brasil – e internacionais, oriundos de nações que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe. O ingresso de estudantes internacionais ocorre através de processo seletivo de estudantes estrangeiros (PSEE). Os professores e estudantes ali presentes relataram suas dificuldades e, de forma contundente, mobilizaram a todos com o que vivem por tamanho descaso e abandono, num desabafo que sabemos trazer dores que já navegam há muito tempo, como podemos ver no comentário trazido pela colega Eliana Melo (SPRJ) em nosso GG: “O Congresso com tema potente “Escravidão  e liberdade” vai afetando cada um em contato com sua ancestralidade branca e escravagista.

Congresso tenso e vivo porque os confrontos eram inevitáveis. Enquanto não pagarmos essa dívida histórica e continuarmos nos defendendo, continuaremos perpetuando o modelo colonizador e colonizado. E com isso todos sairemos perdendo. Quem pôde ouvir as falas potentes saiu do congresso enriquecido e com um mal-estar com efeitos transformadores. Como nos ensina Freud só o Mal-Estar é capaz de operar mudanças qualitativas: sem ele tudo permanecerá sempre da mesma maneira no plano das ideias e capenga nos pontos da ação.”

Ao final da conversa, ficou, para nós, a seguinte questão: Como a Febrapsi poderia contribuir na reconstrução desse Campus? Estaríamos disponíveis a criar um projeto de apoio psicanalítico a essa Comunidade? Voltamos impactadas por tudo o que ali vivenciamos, desejosas de compartilhar, nesse espaço, uma amostra do que o Congresso nos proporcionou. São muitos desafios que a desigualdade e o racismo em nosso país nos impõem, seguiremos pensando, aprendendo e apoiando as iniciativas de abertura, e as propostas de transformação dessa realidade.

Nesse mês de abril foram publicados

9 ensaios. 

Miguel Sayad (SBPRJ), também estimulado pelo tema do Congresso, nos ofertou o ensaio “De Corpo e Alma de Volta à Salvador” (OP 392/2023). Nosso colega nos conta que o sonho de Fernando Pessoa de uma comunidade de países de língua portuguesa tornou-se realidade a partir dos esforços de vários colegas da Febrapsi. No artigo “Português: Língua e Existência”, publicado pela Revista Trieb, da SBPRJ, está registrada a história e a pré-história deste projeto. E, como ele nos diz: “Continuamos nossa travessia psicanalítica, desde as Rotas da Escravidão para uma nova rota – Travessias do Corpo e da Alma – tema tão caro a Freud como a todos nós, psicanalistas e pensadores da cultura e da liberdade, em nosso longo caminho para a libertação do espírito e para uma sociedade criativa e pacífica, desimpedida da opressão e silenciamento devido ao patriarcado maligno.”

Outros ensaios também olharam para o que produzimos em nossas instituições

psicanalíticas. No OP 385/2023, intitulado “Projeto Ubuntu SBPdePA: Ingresso de psicólogos/as e médicos/as negros/as e indígenas no Instituto de Psicanálise através de Bolsas de Formação”, a Comissão Ubuntu composta pelos colegas Ane Marlise Port Rodrigues, Beatriz Saldini Behs, Caroline Milman, Eliane Grass Ferreira Nogueira, Ignácio Alves Paim Filho, Janine Maria Oliveira Severo, Lisiane Milman Cervo, Patrícia Rivoire Menelli Goldfeld, Rosa Santoro Squeff, nos apresenta um panorama de como surgiu este importante projeto de implementação de bolsas de formação voltadas para pessoas negras e indígenas no instituto de psicanálise e os desafios para a sua manutenção, o que mereceu a premiação do Comitê contra a Discriminação, o Preconceito e o Racismo, da IPA (Associação Internacional de Psicanálise): uma forma positiva encontrada pela SBPdePA para enfrentar o mal-estar dos efeitos de nosso processo de colonização, cujo resíduo, o racismo, ainda se encontra presente no interior das nossas instituições. 

No OP 388/2023, “O prêmio e a vida…como ela é”, Ney Marinho (SBPRJ), nos conta sobre o Programa de Acesso Ampliado à Formação Psicanalítica do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), projeto também merecedor do prêmio concedido pelo mesmo Comitê. Ney deixa a questão: “Por que somente agora se pensa e discute uma real democratização da formação psicanalítica?”

No mês de abril também acompanhamos, estarrecidos, as tragédias ocorridas em escolas brasileiras. O ensaio “Os ataques nas escolas: o Eu com isso!”, OP 386/2023, escrito pela Comissão de Infância e Adolescência da Febrapsi, composto por Adriana Vilela Jacob Francisco (SBPRP), Claudia Maria Gomes de Freitas (SBPMG), Elizabeth Anderson Madrid Francisco (SPPel), Hemerson Ari Mendes (SPPel), Jane do Carmo Moura Fabian (SBPG), Joice Calza Macedo (SBPCAMP), Katia Wagner Radke (SPPA), Liliana Dutra de Moraes (SPBsb), Lourdes Negreiros (SPFor), Magda Sousa Passos (SPRPE), Maria Esther Mihich (SBPRJ), Maria Fernanda Marques Soares (SPMS), Marisa Helena L. Monteiro (SPRJ), Marly Terra Verdi (GEP-SJRP), Miriam Altman (SBPSP), Patrícia Lima de Oliveira (GEP-SC), Renata Arouca de Oliveira Morais (SPBsb), Valéria Rodrigues Silveira (SPPEL) e Vera Maria H. Pereira de Mello (SBPdePA), inaugurou a participação de um coletivo de nossa Federação no OP. Nossos colegas nos questionam: “Onde está o Eu que deixou o Isso agir de forma livre e desenfreada? Como entender que a qualquer momento uma mente humana pode atuar sem repressões e agir com crueldade insana contra vulneráveis e desamparados? Esse ensaio nos oferece uma tentativa de metabolizar o terrível massacre ocorrido na escola infantil de Blumenau, poucos dias após outros ataques neonazistas também ocorridos em outras escolas brasileiras. As colegas Gizela Turkiewicz e Helena Cunha di Ciero (SBPSP), também escreveram sobre esse evento no OP 387/2023, “Vocês dormiram bem essa noite? O que acontece com as pessoas que ficam?”, e continuaram com perguntas: “Qual o destino possível para as palavras que não podem ser ditas? Crianças e adolescentes morrendo, professores que se tornam alvos, jovens que planejam atentados, e qual seria o espaço de elaboração possível para tanta dor, tamanha tragédia?” As autoras discorrem sobre a insegurança social gerada diante do horror do que estamos presenciando nestes tempos de intolerância e radicalismo.

Dentre as inúmeras violências cotidianas de nossa época, o machismo comparece fortemente nas relações interpessoais. O ensaio “Masculinidades Tóxicas: O medo da mulher” (OP 389/2023), de Leonardo Siqueira Araújo (SBPMG e SPRJ) discute a nova cruzada conservadora e os mecanismos do machismo contemporâneo: desprezo e desvalorização da mulher como resposta de muitos homens ao grande medo da dependência afetiva e da dominação feminina. “Talvez esses homens vejam, como uma sombra por trás de cada mulher que encontram, o fantasma desse grande mistério e dessa grande dívida em torno de como sua própria vida se iniciou, e da enorme dependência que isso inevitavelmente significa.”

Sabemos que é fundamental para a vida coletiva, o convívio democrático e a vigência de um Estado de Direito. No ensaio “Direito à memória, à verdade e à justiça”, OP 390/2023, Bernardo Tanis (SBPSP) reitera a necessidade de se reconhecer e legitimar a existência da ditadura, para assim reconstruir a memória e permitir a elaboração do traumático. O texto parte do evento “Dia Nacional da Memória pela Verdade e Justiça”, em que se homenageia, na Argentina, as vítimas da última ditadura militar. No Brasil, foi realizada entre os dias 24 de março e 2 de abril de 2023 a “Semana do Nunca Mais – memória Restaurada, Democracia Viva”, em continuidade com as diretrizes estabelecidas pela Comissão Nacional da Verdade.

 

No meio de tantas dores, uma alegria chegou: no dia 24 de abril, aconteceu a entrega do “Prêmio Camões”, no Palácio Nacional de Queluz em Portugal, ao nosso escritor e compositor brasileiro Chico Buarque de Holanda. Segundo os seis membros do júri, o motivo dessa atribuição do galardão literário se deu pela “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”. Chico só agora foi agraciado com o prêmio, concedido em 2019, pois “aquele” que ocupava a presidência de nosso país, se recusou a entregá-lo na época. Mas, como a vida dá voltas – afinal a terra é redonda – o próprio Chico, com alegria, comemorou esse ocorrido nos dizendo: “Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula.” 

E como a vida também nos oferece boas surpresas, dessa vez um bom acontecimento atravessou a existência de muitos dos presentes no Congresso, em Salvador. Chico Buarque, na volta ao Brasil, hospedou-se no mesmo hotel onde realizou-se o nosso evento CPLP, cujo tema “Liberdade e Escravidão”, também nos fez discutir nossa história de colonização. No seu discurso, Chico nos lembra a nossa origem: “O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.” 

Aqui cabe contar um acontecimento bem divertido. Muitos colegas que participaram presencialmente do Congresso cruzaram com Chico, nos elevadores, no restaurante, no saguão do hotel, e é claro que rolaram as selfies. A todo instante vinha alguém esbanjando alegria mostrar a foto ao lado dele. O Instagram de muitas colegas registram esses encontros fortuitos com nosso Ídolo brasileiro. Além disso, muitos foram assistir a última temporada de seu show “Minha Gente”, no teatro Castro Alves, a poucos metros dali. Algumas colegas fizeram chegar nas mãos de Chico Buarque, o ensaio “Meu Caro Chico”, OP 391/2023, de Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP e do GEP de São José do Rio Preto e Região) que, de forma poética, escreveu uma carta aberta a ele. “No ofício de psicanalista, assim como no teu, a palavra é pão, navalha, sangue, carne, é respiração boca a boca, tijolo, bisturi, leite do peito mirrado, é veneno que se bebido menos vira remédio (será?), remédio, que tédio. A palavra é uma vírgula até a próxima sessão (…)”

O nosso relato tem a intenção de reafirmar o clima de alegria que se misturou com os tensionamentos e aprendizados difíceis, alquimia de afetos que permitiu que avançássemos. O evento em Salvador foi um sucesso. Soubemos que 348 pessoas se inscreveram, desses 182 compareceram presencialmente e 166 acompanharam todo o Congresso de maneira virtual. A aposta da Diretoria da Febrapsi no evento híbrido garantiu que a expectativa de inscritos fosse superada. Agradecemos o empenho de todos os colegas que trabalharam arduamente para que o evento acontecesse e pudesse acolher os conflitos que ali emergiram.

“De boas intenções, o inferno está cheio”, OP 393/2023, de Ludmila Frateschi (SBPSP) encerrou a publicação dos ensaios nesse mês. Diante da situação da Cracolândia da região da Luz, Ludmila nos relata a difícil vida de pessoas que sobrevivem e fazem a vida acontecer nesse espaço da cidade de São Paulo: “Uma espécie de cruzada contra todo tipo de intempéries e violências. Gente que aguenta sol, chuva, frio, calor, fome, sede, doença, machucado. Que batalha para conseguir e manter consigo recursos mínimos (absorvente, remédio, cobertor, barraca, roupa limpa, livro, água). Que toma gás lacrimogênio, empurrão de cassetete e bala de borracha todos os dias e muitas das noites, sem poder sentar nem para comer, sem poder dormir. “Essa gente” sobrevive e não abandona a lógica da aglomeração no Centro. Deve haver razão para isso.” E  continua (…) “a psicanálise (ao menos aquela que não se permite ser usada pela ideologia dominante e se faz questão sempre) teria uma contribuição: torcer cada discurso ou sentença que se diz como verdade absoluta sobre aquela região ou “aquela gente” e sustentar os vieses de complexidade que acabam por desmontar os moralismos.”

Por último, informamos que nesse mês relembramos no Instagram, o ensaio de nossa colega Maria Elisabeth Cimenti (SPPA), sobre como a psicanálise pode pensar as questões da infância quando nossas crianças estão cada vez mais expostas à situações de violência, cujo impacto tem se refletido não apenas nos lares, mas também nas escolas. “Nada tem maior frescor que a infância – e ela necessita também do olhar psicanalítico nesse momento atordoador. Aí a psicanálise tem muito a construir e pode aplicar sua potência.”

Assim, seguimos nossa caminhada que vem sendo traçada na desconstrução de uma visão de mundo (eurocêntrica) ao trazermos a pluralidade de vozes de psicanalistas brasileiros e latino-americanos. E também por esse

motivo consideramos que o Observatório Psicanalitico é uma ação decolonial. Sim, como dissemos no nosso pronunciamento do Congresso, “o OP é ilha-lugar de fertilidade, de acolhimento amoroso, de fazer brotar, na pulsão de morte, sua vocação artística de fazer florescer o novo. Lugar-ilha para sonhar, recriar, sonhar mais uma vez a própria poesia, cultivar a manifestação do ser, o imaginário do mundo e a força dos encontros pela palavra.”

Um forte abraço da equipe de curadoria,

Beth Mori (SPBSB), Ana Valeska Maia (SPFOR), Daniela Boianovsky (SBPSB), Gabriela Seben (SBPdePA) e Renata Zambonelli (SBPSP)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: “bahia de todos os santos”, foto de Beth Mori, 2023

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Congresso de Psicanálise, Racismo, Violência, Liberdade

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Categoria: Editoriais
Tags: Congresso de Psicanálise | liberdade | observatorio psicanalitico | Racismo | violência
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