Observatório Psicanalítico – OP 386/2023 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Ataques nas escolas: o Eu com isso! 

Comissão de Infância e Adolescência – Febrapsi. Adriana Vilela Jacob Francisco (SBPRP), Claudia Maria Gomes de Freitas (SBPMG), Elizabeth Anderson Madrid Francisco (SPPel), Hemerson Ari Mendes (SPPel), Jane do Carmo Moura Fabian (SBPG), Joice Calza Macedo (SBPCAMP), Katia Wagner Radke (SPPA), Liliana Dutra de Moraes (SPBsb), Lourdes Negreiros (SPFor), Magda Sousa Passos (SPRPE), Maria Esther Mihich (SBPRJ), Maria Fernanda Marques Soares (SPMS), Marisa Helena L. Monteiro (SPRJ), Marly Terra Verdi (GEP-SJRP), Miriam Altman (SBPSP), Patrícia Lima de Oliveira (GEP-SC), Renata Arouca de Oliveira Morais (SPBsb), Valéria Rodrigues Silveira (SPPEL) e Vera Maria H. Pereira de Mello (SBPdePA).

Um homem com uma machadinha invadiu uma escola de ensino infantil em Blumenau, na manhã de quarta-feira, dia 05.04.2023. Matou quatro crianças. Se entregou. Um massacre de nossas crianças, de nossa fonte de vida e esperança. Ameaça recorrente contra o nosso futuro!  

Violência não pede licença. Não tem limites. Vem do interior do ser humano, por razões múltiplas. Impotentes, nos interrogamos: como tem se dado a construção dos laços sociais para que tal violência aconteça? Escolas não sabem como lidar, famílias ficam arrasadas. Clima de tragédia se alastra.    

Para vivermos em grupo, cabe a cada um a complexa e sofisticada tarefa de lidar com impulsos internos de vida e morte. Este desenvolvimento gradativo se dá na experiência com o outro. Os vínculos nos humanizam. Desde o primeiro, com a mãe ou quem a substitua, mundo interno e externo se configuram, se expandem incluindo pai/substituto, irmãos, família e para além dela, a escola e grupos sociais.   

Num contexto complexo, governado por conflitos internos e externos, o homem sobrevive e vive. Em grupo vivencia constante tensão entre expressão e repressão de seus aspectos mais primitivos. Conquistas e dificuldades vão deixando suas marcas. Na aprendizagem da vida em grupo, a renúncia a desejos, a tolerância a frustrações, o respeito aos outros.  

A tese freudiana da existência da pulsão de morte se evidencia. A permanente luta entre vida e morte, presente no amálgama das pulsões, dá notícias da existência da violência em todos nós. E, às vezes com temor, lembramo-nos do lema de Terêncio: “Nada do que é humano me é alheio”.   

Silenciosa, como o algoz que aparece com toda força de sua violência, a pulsão de morte evidenciou-se enquanto crianças brincavam no parquinho. Exerciam sua expressão mais genuína: brincar/sonhar – brutalmente surpreendidas pela morte.  

Onde está o Eu que deixou o Isso agir de forma livre e desenfreada?   

Como entender que a qualquer momento uma mente humana pode atuar sem repressões e agir com crueldade insana contra vulneráveis e desamparados?  

Como explicar às famílias que crianças, inteiramente dependentes de cuidados, possam ser alvo de tamanha violência?  

Como a sociedade se responsabiliza pelos repetitivos e constantes incidentes de extrema violência a que temos assistido? 

A disseminação dos discursos de ódio e de práticas violentas estimuladas pelas redes sociais, quando são ancoradas em terrenos de uma mente fragmentada, podem também ser fator catalizador de brutalidade.  

“Não quero pensar sobre isso. É horrível demais!” disse alguém.  

Sim, é horrível demais! Horrível aceitar, conter dentro da mente as possíveis consequências advindas de um desenvolvimento mental tão precário e sujeito à dominância das pulsões destrutivas. A escassez de “humanidade” implícita em seu comportamento gera horror e afastamento.  

Entretanto, sabemos que pulsão de morte pode ser abrandada ou transformada quando enlaçada pela pulsão de vida, quando o indivíduo encontra quem possa se oferecer como bom objeto, suficientemente bom ou capaz de ser continente ao desamparo, aos terrores e à própria violência. Empresta-se, então, a capacidade para pensar e sonhar os pensamentos e sonhos de sua criança, traduzindo a ela seus conteúdos inimagináveis e impensáveis, oferecendo novas possibilidades de expressão. 

O autor do massacre, jovem de 25 anos, usou uma “machadinha”. Alguém lembrou da infância, do brinquedo, da cantiga infantil Machadinha: “Ah! Ah! Ah! Minha machadinha!” 

Possivelmente, uma cantiga cantada por muitos de nós!  Neste cenário de horror, a machadinha, ora brinquedo, se transformou em arma mortífera, expressão da mente primitiva, concreta, violenta de um jovem sem capacidade para pensar, sonhar e brincar.  

Quantos massacres com crianças que morrem psiquicamente vão deixando pelo mundo marcas, em si e nos outros, das violências, abandonos e desamparos?  

Situação real, acontecendo com assustadora frequência. Denuncia o fracasso de recursos que alimentam a vida e a capacidade de empatia.  

Forçados pelas circunstâncias e acontecimentos diários, convivemos a todo momento com tragédias de todos os tipos, banalizadas. Constatamos que prevalece a resolução imediata e impulsiva dos conflitos através da violência e da opressão.  

Contudo, alguns acontecimentos ultrapassam a capacidade de continência e tornam-se intoleráveis, impedindo a elaboração.  Certas crueldades extrapolam o razoável, arrebentam os limites da civilidade.   

O que pode levar um homem a matar crianças? Ocorreu neste episódio e acontece nos genocídios, diretos e indiretos, mundo afora.   

Um homem realizou o ato hediondo, e outros, pelas redes sociais, em gozo mórbido, exteriorizam seu sadismo, incentivando a prática de atos semelhantes.   

O que sentimos diante disso? O que poderíamos e deveríamos fazer?  E Eu com isso?  

Como psicanalistas e cidadãos, horrorizamo-nos. Como profissionais de saúde, praticantes da psicanálise, temos repertório para pensar sobre esse acontecimento. Com elementos para compreender e auxiliar a população atingida pelo trauma, lidamos juntos com o insuportável, buscando lugar para o impacto emocional da situação de dor e desamparo. Temos o recurso da palavra, da escuta, do pensar e da criatividade, buscando elaboração diante de vivências como estas.  

Em nível preventivo, nas famílias, há o trabalho voltado às relações iniciais, raiz da subjetividade, com crianças e seus cuidadores. Nas escolas, ampliação dos espaços para elaboração da violência existente em cada um e no grupo. Grupos de escuta. Conversas. Discussão.  

O cuidado com a infância se faz além de estratégias propostas como o aumento do policiamento ao redor das escolas. Falamos de cuidado noutro nível: do amparo e condições necessários para o desenvolvimento humano, da manutenção dos sonhos, da criatividade, do futuro…   

Importante lembrarmos que onde há crueldade, nasce com-paixão: nossa capacidade humana de nos colocarmos no lugar do outro, com noção de seu sofrimento. Nos solidarizamos. Desejamos contribuir. 

Ao escrever este texto expressamos, além da comoção e do assombro que este crime nos causou, nossa profunda com-paixão aos familiares das vítimas. 

Como “associação livre musical”, surgiram em revèrie os versos de Arnaldo Antunes, cantados por Adriana Calcanhoto:  

“Saiba: todo mundo foi neném, Einstein, Freud e Platão também, 

Hitler, Bush e Sadam Hussein,  

Quem tem grana e quem não tem… 

Saiba: todo mundo teve infância,  

Maomé já foi criança,  

Arquimedes, Buda, Galileu,  

E também você e eu,  

Saiba: todo mundo teve medo,  

Mesmo que seja segredo,  

Nietzsche e Simone de Beauvoir,  

Fernandinho Beira-Mar…”   

Diante desta barbárie, através de um “jogo do rabisco” de palavras, as integrantes da atual Comissão de Infância e Adolescência da FEBRAPSI redigiram este texto mantendo vivos não só nossa função do pensar, mas nosso papel na sociedade.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: violência, infância, vínculos, pensar, prevenir

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Tags: Infância | pensar | prevenir | vínculos | violência
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