Observatório Psicanalítico – OP 385/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

PROJETO UBUNTU (SBPdePA) – Ingresso de psicólogos/as e médicos/as negros/as e indígenas no Instituto de Psicanálise através de Bolsas de Formação

Ane Marlise Port Rodrigues (coordenadora), Beatriz Saldini Behs, Caroline Milman, Eliane Grass Ferreira Nogueira, Ignácio Alves Paim Filho, Janine Maria Oliveira Severo, Lisiane Milman Cervo, Patrícia Rivoire Menelli Goldfeld, Rosa Santoro Squeff – Comissão Ubuntu SBPdePA

O ponto de partida do “Projeto Ubuntu” ocorreu após uma atividade científica na SBPdePA, em julho de 2020, sobre “Racismo: o demoníaco estrangeiro que nos habita”, com a participação de Ignácio Alves Paim Filho (único psicanalista negro até então na instituição), Jorge Teixeira (professor da Unisinos/RS) e Rafaela Degani (membro do Instituto/SBPdePA). Foi um evento online, em virtude da pandemia, com milhares de mortes no mundo inteiro, e ecoava forte o assassinato brutal de George Floyd por policiais americanos, gerando uma comoção mundial e alavancando o movimento “Vidas negras importam”.

Em nosso país, vidas negras importam? 

Quando uma pessoa negra é morta a cada 23 horas, sendo essa população a maioria entre os mais pobres do Brasil, fica evidente a desigualdade em relação aos brancos e até mesmo a vigência, na atualidade, de uma secular política de seu extermínio (políticas eugenistas) ou de sua perpetuação numa forma social escravista (Muniz Sodré, “O facismo da cor”, 2023). As dificuldades de ascensão social e educacional são muito evidentes e crônicas. A mesma problemática é válida para a população indígena.

Após esse evento na SBPdePA, vivenciamos a ruptura do silêncio sobre o Racismo Institucional que ocorria na nossa Sociedade e em outras Instituições de Psicanálise no Brasil, o que é evidente em função da quase ausência de profissionais negros/as e indígenas como membros da IPA ou instituições psi e outras em geral.

Através da fala dos convidados, com intenso debate do público, evidenciou-se o Racismo Estrutural (Sílvio Almeida, “Racismo Estrutural”, 2019) como um estrangeiro demoníaco que nos habita, ficando claro que precisávamos quebrar o silêncio institucional que até então vigorava entre nós, convocando a Diretoria e muitos colegas a um reposicionamento ao tomarem consciência dessa negação/desmentida do racismo em nós e entre nós e se implicarem com um desejo de mudanças. Tomar contato com nossos demônios, como bem sabia Freud, nunca foi fácil. Ver nossa parte demoníaca, que ataca a humanidade do sujeito negro ou indígena e que ataca nossa própria humanidade ao nos desumanizarmos, exige intenso e sofrido trabalho psíquico.

Após esse momento tão marcante e histórico, a Diretoria da SBPdePA, cuja presidente era Ane Marlise Port Rodrigues, encampou um debate interno através de reuniões gerais com toda a membresia e assembleias, resultando numa Força-tarefa depois denominada de Comissão Ubuntu (Eliane G. F. Nogueira – coordenadora 2020/2022) para estudar e delinear um Projeto Piloto que viesse a viabilizar o ingresso de colegas negros/negras e indígenas na Formação Psicanalítica, sendo criado o Projeto Ubuntu – Programa de Bolsas-Formação Psicanalítica do Instituto de Psicanálise da SBPdePA para Profissionais Negros, Negras e Indígenas das Áreas de Psicologia e Medicina (aprovado em Assembleia Geral Ordinária em 27 de abril de 2021, consta dos Estatutos da SBPdePA, com registro em cartório). Ao mesmo tempo, vai sendo gestado o Grupo de Estudos Colonialismo, Racismo e Desigualdade, oficializado em setembro/2020 e coordenado pelos colegas Janine Severo, Sandra Fagundes e Leonardo Francischelli. Através da discussão de livros e artigos de autores dessa temática, bem como os encontros com palestrantes convidados, o Grupo promoveu aos colegas interessados um letramento até então inexistente.

A Diretoria do Instituto, em sintonia com esse movimento interno, oferece os seminários Psicanálise e relações Interraciais (2021/1°semestre) e Psicanálise e racismo: autoras brasileiras (2022/1°semestre), ambos coordenados por Janine Severo; ainda, A crítica da razão negra à luz da psicanálise (2022/2°semestre), com Ignácio Paim Filho e Janine Severo) e Racismo: uma perspectiva freudiana (2023/1°semestre), com Ignácio Paim Filho).

A fala do colega Ignácio foi muito impactante e transformadora para vários colegas que, a partir daquele momento, tornaram-se apoiadores do nascente Projeto Ubuntu, tanto em sua filosofia (ações afirmativas antirracistas; pensar mais no coletivo veiculado pela filosofia africana Ubuntu – “Eu sou porque nós somos.”), quanto financeiramente. A SBPdePA destina parte do lucro de seus eventos ao Fundo Financeiro Projeto Ubuntu (conta bancária específica, com PIX), marcando seu compromisso com a viabilidade do Programa de Bolsas Formação.

Desde então, vários cursos, simpósios, rodas de conversa, seminários e a Revista Racismo e Preconceito (editora Rosa Squeff) foram promovidos na instituição voltados a uma sensibilização e maior consciência do atravessamento do racismo institucional entre nós. Vários diálogos com outros grupos tomaram lugar através de convites aos componentes da Comissão Ubuntu. As resistências ao reconhecimento do racismo como um problema dos brancos também, cabendo-lhes sua responsabilidade em ações antirracistas (não só discurso), aparecerão no âmbito institucional e mobilizarão as relações entre colegas. 

Lidar com o mal-estar da cultura no interior das nossas sociedades é desafiador e um processo doloroso e bastante desconfortável. Os mensageiros de notícias dolorosas e negadas sofrerão o impacto do desagrado e de afetos até então subterrâneos. Trata-se também de mexer na estrutura da instituição, no reconhecimento do privilégio branco e do engessamento da ocupação dos lugares, pré-determinados socialmente. Cabe lembrar Frantz Fanon (“Pele negra, máscaras brancas”, 1952) quando acrescenta a dimensão da sociogenia à filogenia e ontogenia.

A Bolsa-Formação Psicanalítica concede ao bolsista isenção de pagamento das mensalidades, bem como gratuidade em eventos da SBPdePA. No entanto, a despesa mais significativa da Formação Psicanalítica é o pagamento da análise pessoal e das supervisões com analistas com função didática. A Bolsa-Formação consiste no recebimento pelo bolsista de um valor mensal, por pelo menos cinco anos, a partir do início de sua análise. Acrescenta-se um valor após o início da primeira supervisão para essas despesas fixas. Os analistas com função didática sinalizam sua disponibilidade em receber os bolsistas para análise de formação e supervisão, tendo havido uma boa adesão de colegas ao Projeto. Com o avanço da Formação, o bolsista passa a participar dessas despesas através de um sistema de escalonamento, em que, a partir do primeiro ano de supervisão, ele passa a contribuir com o valor de 5% do valor da Bolsa, no segundo ano 10% e depois 15%, o que pensamos ter um significado simbólico importante.

Um dos maiores desafios do Projeto tem sido a arrecadação financeira, através de pessoas físicas e jurídicas, para garantir os 5 anos da Bolsa-Formação ao colega ingressante. Além da SBPdePA, os recursos financeiros têm vindo de apoiadores individuais mensais da própria sociedade (próximo de 30% da membresia), de alguns colegas de outras sociedades ligadas à Febrapsi ou da área psi do RS, e leigos. Atualmente, uma das vagas está garantida por cinco anos através de pessoa física. As vagas são oferecidas conforme as possibilidades do Fundo Financeiro. Nosso imenso agradecimento a todos/as que estão tornando o Projeto Ubuntu uma realidade, ainda que inicial, mas em expansão na medida em novos apoiadores ingressem.

O primeiro Edital Público (outubro/2022) oferecia uma vaga e tivemos 10 inscritos. A seleção contempla duas etapas. Na primeira, duas entrevistas com dois membros da Comissão Ubuntu, além da ficha de autodeclaração racial, currículo, experiência clínica e carta motivacional. O/a colega selecionado em primeiro lugar é indicado à segunda etapa conduzida pelo Instituto de Psicanálise dentro de seu processo seletivo usual. Atualmente, contamos com duas colegas recebendo a Bolsa-Formação: uma iniciou sua análise em março de 2022 (fase piloto do Projeto) e outra iniciou sua análise em março de 2023 (Edital N.1/2022). O ingresso em seminários ocorre após um ano de análise prévia para todos os postulantes à Formação.

O Projeto Ubuntu envolveu, desde julho de 2020, um amplo trabalho institucional, jurídico, financeiro, contábil, contratual, cartorial, para viabilizar o lançamento público de seu primeiro edital no site da SBPdePA em outubro de 2022.

Pretende-se lançar, em julho de 2023, o segundo Edital para mais uma vaga, avaliando os recursos de seu Fundo Financeiro.

Os projetos da SBPdePA e da SBPRJ, aprovados em assembleias institucionais em 2021, foram contemplados com prêmios pelo Comitê Comunidade e Mundo da IPA – área de Preconceito, Discriminação e Racismo – para o Congresso IPA/2023/Cartagena. Uma crescente consciência e sensibilização sobre o racismo que nos habita parece estar em andamento. Diretorias de Comunidade e Cultura, abrangendo a questão do racismo e preconceito, na FEBRAPSI, FEPAL e IPA foram sendo sedimentadas. A IPA instituiu recentemente, de forma permanente e não apenas provisória, o Comitê de Preconceito, Discriminação e Racismo na área de Comunidade e Mundo (coordenado por Abel Mario Fainstein). Nunca tivemos tantas vagas gratuitas para eventos pelo Brasil em ações afirmativas. Almejamos o dia em que as Bolsas-Formação ou vagas gratuitas não sejam a única alternativa para o povo preto ou indígena.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Vidas Negras Importam

Palavras-chave: Formação Psicanalítica, Racismo Institucional, Projeto Ubuntu, Bolsas Formação Psicanalítica, Prêmio IPA

Imagem: artista Mitti Mendonça

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Tags: Bolsas Formação Psicanalítica | Formação Psicanalítica | Prêmio IPA | Projeto Ubuntu | Racismo Institucional
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