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O TELESCÓPIO DE FREUD E O JAMES WEBB
Denise Vasques (SBPSP)
“Parece que o sonho e a neurose conservaram mais antiguidades psíquicas do que era possível imaginar, de modo que a psicanálise pode reclamar para si uma posição elevada entre as ciências que buscam reconstruir as fases mais antigas e sombrias do começo da humanidade.”
(FREUD, A interpretação dos sonhos)
Imagens como a da Nebulosa Carina comovem não só cientistas, mas todos os interessados em assuntos relativos ao Universo. As imagens foram trabalhadas e formadas a partir dos dados brutos captados e armazenados pelo telescópio espacial James Webb e remontam ao passado do cosmos, algo em torno de 13,1 bilhões de anos.
Fruto de uma parceria da NASA com a Agência Espacial Europeia (ESA) e Agência Espacial Canadense (CSA), o já exitoso James Webb foi lançado em dezembro de 2021. Um mês depois, entrou em órbita em harmonia com o planeta Terra, a 1,6 milhão de km de distância deste. E ainda teve de aguardar outros tantos meses para posicionamento e calibragem de seus equipamentos. As primeiras imagens foram apresentadas em julho de 2022 e, desde então, o James Webb vem surpreendendo, dando-nos notícias do desconhecido de nossas origens.
Alguma relação de tal descoberta com o pensamento de Freud? A analogia entre o aparelho psíquico e o telescópio de que Freud faz uso em “A intepretação dos sonhos” é interessante. Aparelho psíquico e telescópio são capazes de formar imagens, imagens estas que se apresentam idealmente, isto é, não encontram uma localização material ou anatômica.
Freud partiu da ideia de G. Th. Fechner, para quem a vida onírica e a vida de vigília ocorrem em “palcos” diferentes. Freud irá adotar a ideia de “palco”, mas privilegiará as semelhanças entre sonho e vigília, não as diferenças. Resumidamente, Freud usa a ideia de palco para chegar à concepção de “instâncias” ou “sistemas” e desenvolver um modo de funcionamento do aparelho psíquico ao qual ele acrescenta o fator dinâmico.
Ausência de uma localização anatômica e dinamismo já vinham ganhando contornos no pensamento de Freud desde 1891, em “Sobre a concepção das afasias”.
Um dos sistemas descritos por Freud é o perceptivo (Pcp), cuja função é receber estímulos. O telescópio James Webb também possui seu sistema perceptivo. Trata-se de um espelho de 6,5m de diâmetro, o maior já lançado ao espaço, e de uma série de 18 segmentos hexagonais de metal berílio revestido de ouro, os quais recebem a luz em seu espectro infravermelho. Seja por sua maior superfície de captação, seja por operar no espectro infravermelho, o James Webb é o mais sensível e potente telescópio. Mas não será por muito tempo pois o Telescópio Gigante de Magalhães – GMT, projeto do qual o Brasil participa por meio da Fapesp, terá um espelho de 25m de diâmetro e uma área de recepção de luz dez vezes maior que a do James Webb. Melhor ainda, o GMT não é um telescópio espacial e estará situado no deserto do Atacama, o que promete facilitar, em muito, nossa visitação.
No telescópio James Webb, a luz passa por suas lentes cujas câmeras fotográficas conservam os dados brutos que, por sua vez, são usados no processamento e na formação de imagens. As imagens são construídas pelo telescópio a partir de centenas de arquivos separados.
Já quanto ao nosso aparelho psíquico, diante da recepção de estímulos, nossa memória conserva “traços mnêmicos”. Freud sustenta que somos capazes de firmar um sem-número de associações entre as representações originadas a partir da excitação dos traços mnêmicos.
Os traços mnêmicos e as representações são, entre outros, matéria-prima para a formação de imagens, as quais consistem em um modo de expressão dos nossos pensamentos inconscientes. Para Freud, as imagens são uma possibilidade de apresentabilidade ou representabilidade ou, ainda, de figurabilidade dos nossos pensamentos mais profundos e abstratos. Diante da dificuldade ou impossibilidade do uso da linguagem lógica verbal, as imagens são uma maneira eficiente – e também conveniente pois dissimulada – para dar vazão a pensamentos profundos que lutam por se exprimir. O autor revela, ainda, uma consonância entre a vida onírica e a vida de vigília ao afirmar que podemos trabalhar na formação de imagens seja nos sonhos, seja em devaneios. Somos, sim, pensadores de imagens.
Podemos dizer, então, que os dados brutos armazenados pelo James Webb equivalem aos nossos traços mnêmicos, os quais, conforme Freud nos ensinou, podem ser sempre traduzidos e retraduzidos (Carta a Fliess, de 06/12/1896), formando novas e diferentes imagens.
Outro ponto que nos chama atenção refere-se ao fenômeno denominado “lentes gravitacionais”. No espaço, aglomerados de galáxias funcionam como lupas, isto é, atuam como lentes de aumento devido à sua energia e massa. Um exemplo, para ficar mais claro: o aglomerado de galáxias SAMC 0723, localizado a 5 bilhões de anos-luz, funciona como uma lente de aumento que permite ver um outro objeto espacial a 13,1 bilhões de anos-luz. Por isso, as “lentes gravitacionais” estão nos permitindo enxergar os primórdios do Universo.
Esse fenômeno foi previsto na segunda década do século XX por Einstein, com quem Freud belamente dialogou a respeito do cruel tema da guerra. Freud, em sua carta a Einstein em 1933, não deixou de ressaltar o jogo de forças entre vida e morte, sempre presente e que impulsiona o desenvolvimento do indivíduo e da humanidade, assim como – acrescentamos – do cosmos. Alguns anos antes de Einstein, porém, Freud já havia dito que as imagens em nossos sonhos são o retorno recriado de nossa infância. Em outros termos, as imagens que produzimos são representações de lembranças infantis esquecidas que exercem atração sobre nosso pensamento inconsciente. Por meio das imagens, as lembranças conseguem, então, ser reavivadas ou renovadas. A atração exercida será maior quanto mais intenso o afeto a elas vinculado. Conforme a linguagem da astronomia, seriam nossas “lentes gravitacionais”.
Considerando que o Big Bang tenha ocorrido a 13,8 bilhões de anos-luz e que o James Webb, por meio das “lentes gravitacionais”, nos mostra objetos a 13,1 bilhões de anos-luz, estamos tendo acesso à infância destes objetos espaciais e do próprio Universo. Ver o Universo bebê é possível uma vez que a luz teve de viajar – uma longa distância e por muito tempo – até chegar às lentes do telescópio, o que significa que temos uma imagem atual daquilo que passou. Adam Phillips, em “Becoming Freud”, traz a mesma ideia ao afirmar que a infância é uma história que os adultos criam a respeito de si mesmos. E para criar esta história, lançamos mão de alguns recursos como as imagens e as “lentes gravitacionais”.
A pergunta que nos colocamos é: qual é o desejo realizado pelas imagens que vêm sendo processadas pelo James Webb e que tanto espanto nos vêm causando?
As imagens do telescópio James Webb realizam, assim como nos sonhos e fantasias, um desejo que é infantil e, ao mesmo tempo, atual: o desejo dos primórdios e pelos primórdios com seus espectros de vida e morte. Nesta esteira, o desejo de conhecer nossas origens e a origem do que é hoje o lugar em que habitamos. Somos levados a dizer, então, que nós, por meio do James Webb, estamos criando a história da infância do nosso Universo.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura
Palavras-chave: telescópio, James Webb, lentes gravitacionais, imagem, sonho, desejo, infância
Imagem da Nebulosa Carina, berçário estelar a 7.600 anos-luz da Terra, processada pelo telescópio espacial James Webb em 2022.
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