Observatório Psicanalítico – OP 383/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Meu pai, esse desconhecido 

Ana Valeska Maia Magalhães (SPFOR)

Recebi, por esses dias, uma fotografia de meu pai. Notei os cabelos brancos e ralos, as linhas do tempo tecendo uma cartografia em sua face. Em seu colo está um cãozinho recém-nascido que perdera a mãe durante o parto. O futuro do filhote é uma incógnita. Candidamente meu pai mira essa vida pequenina que se contorce em suas mãos enquanto busca alcançar o bico da mamadeira. 

Vejo o tempo condensado na imagem, no gesto de cuidado que se repete. O que vemos, o que nos olha? Pergunta o filósofo da imagem, Georges Didi-Huberman. O registro das narrativas familiares tantas vezes levado ao esquecimento, até que alguém revolva os álbuns, retire o mofo das fitas nas filmadoras e reveja internamente as cenas de uma história. Procure contar o que não foi dito, não foi visto mas foi vivido emocionalmente. 

E, por uma via aberta através de conexões inesperadas, no mesmo dia que recebi a fotografia de meu pai, assisti ao filme Aftersun

O que há depois do sol, da piscina, do mar amplo e convidativo, da ansiada viagem de férias?  Sophie tem 11 anos e seus pais não são mais casados. Com o pai, Calum, segue para uma praia na Turquia. Os dois juntos e a aventura de um mundo que se descortina em novos formatos, sons, cores, cheiros. Sophie registra os momentos alegres dessas férias, capta detalhes, vez ou outra exibe enquadramentos instáveis que evidenciam faces desconhecidas de seu pai. A fita onde estão gravadas as cenas das férias é de súbito rebobinada, conduz o espectador a flashes de pessoas dançando em uma boate, volta-se à praia, aos turistas rasgando o céu em voos de parapente. Passado e presente, a quietude e a tensão, o registro e a imaginação, a sensação de que algo está prestes a se romper, algo íntimo, familiar. Histórias dentro da história e uma pergunta começa a ganhar corpo: conhecemos os nossos pais?

É possível recolher com a rede da imaginação e transmitir ao outro os mistérios do interior das portas trancadas, das ausências não explicadas, do significado entranhado nos gestos de despedida, dos aniversários que marcam a nossa presença no tempo e que podem ser feridas dolorosas? É possível juntar os pedaços e contar uma história, até das tragédias que nos partiram? Sim, se formos artistas como Charlotte Wells, Paul Mescal ou Frankie Corio são, mas eu também acredito no poder da ficção que viceja nos dias, na força que brota quando aninhamos nossos corpos no divã e falamos  a alguém preparado para escutar a surpresa do que vem na fibra das palavras, nos sons dos silêncios, do que emerge criativamente de nossa memória. 

Olho novamente para a imagem. Quem é o meu pai? Eu o conheço? Talvez essa seja uma pergunta que receberá respostas inconclusas mas também é um convite para darmos uma escrita diferente à narrativa que nos habituamos a fazer acerca do que nos compôs. 

Aos 11 anos fui conhecer um irmão que acabara de nascer. Meu pai morava com sua nova família. Eu usava uma roupa rosa que contrastava com a grama muito verde, e me causou uma forte impressão as bochechas gordinhas de meu irmão, quase tão rosadas quanto o meu vestido. Meu pai estava com o bebê no colo, candidamente ele mirava aquela vida pequenina, e agora eu penso que ele também deve ter olhado assim para mim, quando foi minha a oportunidade de estar no mundo como um bebê. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Cultura

Palavras-chave: pai, psicanálise, memória, Aftersun, romance familiar. 

(Imagem: cena de Aftersun. Roteiro e direção Charlotte Wells. Com Paul Mescal e Frankie Corio)

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Categoria: Cultura
Tags: Aftersun | Memória | pai | Psicanálise | romance familiar
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