Bom dia Colegas,
Considerando que amanhã (8 de março) é o Dia Internacional da Mulher, recebemos e publicamos hoje este ensaio da colega Lina Schlachter Castro (SPFOR).
Agradecemos Lina sua colaboração no OP.
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
A mulher e o feto
Lina Schlachter Castro (SPFOR)
Não havia dúvidas: a gravidez tinha que ser interrompida. Quedas propositais, objetos perfurantes na vagina e, por fim, um aborto clandestino. O procedimento foi caro. Porém, a auxiliar de enfermagem (a fazedora de anjos) era séria: ela fervia os seus instrumentos. Após o procedimento, seria importante a receita de um antibiótico, para evitar septicemia.
A primeira tentativa não foi bem-sucedida. Foi necessário algo mais, alguns dias depois. Nesse momento, um cano fino e vermelho que seria inserido em seu sexo estava dentro de uma bacia cheia de água fervente. Ao lado da bacia, uma escova de cabelo. Após o feto ser expulso de seu útero no dormitório da sua universidade, houve hemorragia. Medo de morte. Alguns dias de internação.
O último livro escrito por Annie Ernaux, “O Acontecimento” (2022), relata o que a escritora viveu na França em 1963. Suspiros indignados: ele poderia ter acontecido com qualquer jovem brasileira nos dias de hoje. A nossa lei antiaborto permanece quase inalterada há mais de 80 anos.
Aborto, no Brasil, só é legal se houver risco de vida para a mulher, estupro, ou malformação cerebral do feto. Mesmo assim, o processo para as que possuem esse direito é sofrido: vejamos a experiência de uma menina de 12 anos, grávida pela segunda vez.
O aborto, nesse caso, seria permitido tanto por ter sido decorrente de estupros recorrentes, como pela idade: até os 14 anos, a legislação brasileira compreende que a criança não tem capacidade de consentir e o estupro é presumido. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), aliás, 61% das vítimas de estupro no Brasil são meninas de até 13 anos.
Grávida pela primeira vez aos 11 anos, ela procurou um serviço de saúde, mas foi desaconselhada a realizar o procedimento. Ainda aos 11 anos, em 2022, o Conselho Tutelar denunciou uma nova gravidez. Dessa vez, a autorização para realizar um aborto legal foi suspensa a pedido da Defensoria Pública do Estado e da mãe da menina. A defensora pública foi apontada como a defensora do feto. Atualmente, a menina está com 12 anos, aproximadamente 30 semanas de gravidez, um filho de um ano no colo, afastada da família, e morando em um abrigo municipal.
Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada pela UnB, apenas um em cada 270 abortos voluntários é feito dentro da lei. Estima-se que uma em cada cinco mulheres brasileiras com mais de 40 anos fez um aborto ao longo da vida. Portanto, é imprescindível que nós, psicanalistas, falemos sobre o tema. Por que, afinal, temos tão poucos trabalhos sobre o assunto? Será que, de alguma forma, ainda ecoa sobre nós a ideia freudiana de que o destino saudável para o Édipo feminino é a maternidade?
Jessica Benjamin (2022) em um dos poucos artigos psicanalíticos sobre o assunto, é categórica: há uma tentativa de controlar a mulher e o seu corpo, o que tem relação com uma negação da dependência humana. A vulnerabilidade que está em cada um de nós é colocada no feto. Ela termina seu texto afirmando que devemos reverter a ideologia de terra/terreno (land) controlado e subjugado, e favorecer a ideia de uma terra/mundo (earth). A busca é pelo reconhecimento mútuo. Todos nós dependemos um do outro.
Vários anos antes, Helene Deutsch (1945), em um texto surpreendente para o seu tempo, também é enfática ao afirmar que toda mulher tem o direito de “renunciar à maternidade” (p.179), seja ele legal ou não. Ela também pontua que a gravidez acidental vem como um ataque repentino à vida, e defende que, talvez, o aborto seria a saída mais ajustada à realidade.
O discurso anti-aborto é multifacetado, vem de diversas esferas da opinião pública. Ele é firmemente enraizado na moral, e em ideias sobre papéis de gênero que reproduzem as estruturas patriarcais. Nele, o privilégio é da vida do feto sobre a autonomia da mulher. A subjetividade feminina, além de ser vista como sinônimo de maternidade, é tratada como infantil, moralmente deficiente e dependente. As mulheres devem ser governadas, controladas. Mais especificamente, a lei é opressiva especialmente para mulheres de baixa-renda, negras e jovens, que não possuem renda para o acesso a um aborto seguro e são, consequentemente, as que mais morrem em decorrência de um aborto.
Em 2018, o psicanalista Ezequiel Achilli (APdeBA), na Revista Brasileira de Psicanálise, mencionando Margarethe Hilferding, que estudou as consequências psíquicas de gerar um filho não desejado, convoca os psicanalistas, principalmente os argentinos, a debater sobre a descriminalização do aborto.
E nós, brasileiros, quando começaremos a nossa discussão?
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Cultura; Política e Sociedade
Palavras-chave: Descriminalização do aborto, Feminino, Estupro, O Acontecimento
Imagem: Série Abortos, Sem título n.1, 1998, Paula Rego
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