Hoje, dando sequência aos textos dos candidatos da América Latina ao BOARD da IPA, publicamos o ensaio do nosso colega Mariano Horenstein da Associação Psicanalítica de Córdoba (APC) um dos candidatos a nos representar no Board da IPA. Agradecemos a você Mariano por ter respondido prontamente ao nosso Convite de escrever sobre um acontecimento da atualidade para o OP…
Forte abraço, equipe de Curadoria
_______________________________________________________
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
United Colors of IPA
Mariano Horenstein (APC) Associação Psicanalítica de Córdoba (Argentina)
Anos atrás, a Benetton lançou uma inovadora campanha publicitária onde a variada paleta de cores das suas roupas – aludida em seu lema: “United Colors of Benetton” – foi representada através de fotografias com modelos, geralmente crianças e jovens, de diferentes cores de pele, olhos e cabelos, numa celebração à diversidade étnica.
Temos o privilégio e o orgulho de pertencer à primeira e mais importante instituição psicanalítica internacional, aquela que se ocupa do legado freudiano, e que não por acaso – tanto em espanhol como em português – chamamos coloquialmente pela sua sigla inglesa: IPA.
Vivemos numa época em que o retrocesso das democracias e o avanço do populismo ameaçam o futuro da espécie, criando um clima onde posições que acreditávamos terem sido superadas são expressas de uma forma desavergonhada. Hoje em dia, cidadãos respeitáveis podem assumir-se como terraplanistas, propor que o criacionismo seja ensinado nas escolas, ou defender um Estado que avalize a supremacia étnica sem ruborizar. Isso tudo sendo informado através de grupos WhatsApp de origem duvidosa.
Em tempos perigosos como estes que nos tocam, pertencer a uma instituição internacional, onde a diversidade do mundo encontra um lugar, pode ser uma bênção. No entanto, não devemos ser ingénuos, pois uma instituição assim também repete, na sua fractalidade, as contradições e assimetrias do mundo extra-institucional: somos todos iguais, mas parece que uns são mais iguais do que outros.
Na Benetton, como na maioria das empresas transnacionais, o fornecimento de matérias-primas, a manufatura, e, evidentemente, o comércio são globalizados, mas o conceito e o design dos produtos – o verdadeiro valor acrescentado de uma marca – têm lugar nas sedes das metrópoles europeias.
Penso que vale a pena perguntar sobre o que está a acontecer no contexto da psicanálise internacional, em particular sobre o lugar da psicanálise latino-americana nela. Estaremos em perigo de repetir um modelo de diversidade sem efeitos verdadeiros? Qual é o nosso verdadeiro lugar na psicanálise internacional? Qual é o Outro que fala através de nós, qual é o Outro a quem nos dirigimos, que lugar ocupamos em e para esse Outro?
Não creio que existam respostas simples. Proponho apenas colocar algumas questões em tensão. Se escolhermos distanciar-nos de uma imagem publicitária – ao estilo Benetton – um contexto internacional como o oferecido pelo IPA torna-se um espaço onde as tensões são enfrentadas, um espaço de consenso, mas também de conflitos. E o modo como escolhermos responder a estas questões influenciará a forma que tomará a nossa voz porta afora da América Latina.
A questão do Outro não é metafísica, mas clínica. O Outro – o da cultura, incluindo a cultura institucional – permeia a cada sujeito, a cada analista, fala através de todos nós. A língua que é falada não é sem importância, pois apesar de ter quatro línguas oficiais (1), a “língua franca” nas discussões da IPA é o inglês. Ainda que o “bad English” seja a língua oficial do IPA (2), as nossas têm o caráter de línguas menores (3). A cultura que uma língua carrega consigo não é algo marginal no trabalho cotidiano de um analista, mas sim algo que está em seu osso. A nossa clínica se configura num espaço de interseção singular e efémero entre a forma da escuta (formatada pelas nossas teorias), a ética particular que nos atravessa, e um modo de falar único através da qual, cada vez que alguém fala – ou teoriza – também o faz um determinado contexto cultural.
Durante muitos anos a América Latina tem funcionado, para a Europa – o lugar onde a psicanálise foi inventada e onde as mais nobres das nossas tradições vieram à luz – como um território ultramar onde se pode aplicar “desenhos” metropolitanos. Temos sido frequentemente filiais, quando muito, franquias de usinas epistémicas transatlânticas. Ninguém espera que a inovação surja das margens, e por vezes nós mesmos, identificados com as antigas potências coloniais, nos esmeramos em sermos os melhores discípulos (4). A maravilha que o movimento antropofágico pôs em relevo é que existe um outro modo possível de nos vincularmos com o mundo (5).
Em outras instituições – as lacanianas, por exemplo – a situação é ainda mais grave, e as contradições são resolvidas com mão de ferro e dogmatismo, sem espaço para dissensões. Aí a única cor dominante é o cinza.
No entanto, não se trata de nos apresentarmos como um arco-íris eclético, bem “pensante” e sem consequências, mas de reconhecermos que a nossa instituição – a sua diretoria em particular – é também ágora e palestra, um lugar para pôr as diferenças em jogo e para serem escutadas com um sotaque inequivocamente latino-americano. Não para nos opormos ao conhecimento que a tradição nos legou, mas para a tornarmos mais produtiva e fértil. E porque não, para irmos mais longe, para alargar o espectro do que se pensa através das teorias que herdamos, para dar lugar não só às maravilhosas cores de Benetton, mas também ao que ainda hoje permanece invisível, ao que não se sabe, ao infravermelho ou ao ultravioleta, tanto da espécie humana como da disciplina que melhor a aborda na sua singularidade.
Imagino uma instituição com esse espírito, menos preocupada em dizer API em vez de IPA do que em inovar e mutar com os tempos, mantendo ao mesmo tempo aquilo que resiste da tradição, num anacronismo maravilhoso, contra as tentações da época. Imagino uma instituição mais próxima do espírito dos pioneiros que sabiam que eram exploradores do desconhecido, mais próxima de Freud do que do lustroso Jones ou Eitingon, o codificador.
Nos tempos em que vivemos, no vórtice de uma mutação vertiginosa, não há lugar para a ortodoxia inercial ou para o gatopardismo menos que queiramos transformar-nos numa antiguidade. Tampouco se trata de apenas declamar o pluralismo, mas de extrair dele os seus efeitos.
Porventura, nós – os analistas latino-americanos – deveríamos propor um lugar mais protagonista, tanto no político quanto no epistêmico. Atrevamo-nos a isso. O fato de sermos guardiões da tradição psicanalítica não significa que estejamos apenas destinados a repeti-la… Seremos nós capazes de imaginar uma IPA a transformar-se com os ventos frescos que sopram da nossa região?
Notas:
(1) Poderíamos perguntar-nos, porque não o português? Quando a percentagem de membros que analisam e pensam nessa língua é o dobro da dos membros de língua francesa e um pouco menos do que a dos de língua alemã?
(2) De acordo com a feliz ocorrência de Stefano Bolognini.
(3) Com todo a potência criativa que uma língua menor comporta (Horenstein, M., Psicoanálisis en lengua menor, Viento de Fondo, Cba., 2016).
(4) Esta situação está longe de estar reduzida à América Latina, pois em muitos países europeus, deslumbrados pelo conhecimento de certas capitais, a situação é idêntica.
(5) E os recentes prêmios atribuídos a projetos encubados no Brasil são apenas uma confirmação, de muitos mais por vir… .
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Tradução: Samantha Nigri (SBPRJ)
Categoria: Instituições Psicanalíticas
Palavras-chave: IPA, pluralismo, “língua menor”, tradição, invenção
Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook:
=============================================
Texto Original em Espanhol
Observatorio Psicoanalítico – OP 374/2023
Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo
United Colors of IPA
Mariano Horenstein – APC (Asociación Psicoanalítica de Córdoba)
Años atrás, Benetton lanzó una campaña publicitaria innovadora donde la variada paleta de colores de sus prendas -aludida en su motto: “United Colors of Benetton”- era representada a través de fotografías con modelos, generalmente niños y jóvenes, de distintos colores de piel, ojos y cabello, en una celebración de la diversidad étnica.
Tenemos el privilegio y el orgullo de pertenecer a la primera y más importante institución psicoanalítica internacional, aquella que cuida del legado freudiano, que no por casualidad -tanto en castellano como en portugués- nombramos coloquialmente con su siglas en inglés: IPA.
Vivimos una época en la cual el retroceso de las democracias y el avance del populismo pone en jaque el futuro de la especie, creando un clima donde posiciones que creíamos superadas se expresan de modo desvergonzado. Hoy en día respetables ciudadanos pueden asumirse terraplanistas, proponer que el creacionismo sea enseñado en las escuelas, o defender un estado que avale la supremacía étnica sin ruborizarse. Todo ello informándose a través de grupos de WhatsApp de dudoso origen.
En tiempos peligrosos como los que nos tocan, pertenecer a una institución internacional, donde la diversidad del mundo encuentre lugar, puede ser una bendición.
Aunque es preciso no ser ingenuos, pues una institución así también repite, en su fractalidad, las contradicciones y asimetrías del mundo extra-institucional: todos somos iguales, pero pareciera que algunos son más iguales que otros.
En Benetton, como en la mayoría de las compañías transnacionales, se globaliza la provisión de materias primas, la manufactura, y por supuesto el comercio, pero el concepto y el diseño de los productos -el verdadero valor agregado de una marca- ocurre en los cuarteles de las metrópolis europeas.
Creo que vale la pena preguntarse por lo que sucede en el contexto del psicoanálisis internacional, en particular por el lugar del psicoanálisis latinoamericano en él. ¿Corremos el riesgo de repetir un modelo de diversidad sin efectos verdaderos? ¿Cuál es nuestro verdadero lugar en el psicoanálisis internacional? ¿Cuál es el Otro que habla a través nuestro, cuál es el Otro a quien nos dirigimos, qué lugar ocupamos en y para ese Otro?
No creo que existan respuestas sencillas. Me propongo apenas poner en tensión algunas preguntas. Si elegimos corrernos de una imagen publicitaria -al estilo Benetton-, un contexto internacional como el que ofrece IPA es un espacio donde se dirimen tensiones, es un espacio de consensos pero también de conflictos. Y del modo en que elijamos responder esas preguntas dependerá la forma que tome nuestra voz puertas afuera de Latinoamérica.
La pregunta por el Otro no es metafísica sino clínica. El Otro -el de la cultura, incluso la cultura institucional- permea a cada sujeto, a cada analista, habla a través de nosotros. La lengua en la que habla no es algo intrascendente, pues pese a tener cuatro lenguas oficiales (1), la lingua franca en las discusiones de IPA es el inglés. Aun siendo el bad English la lengua oficial de IPA (2), las nuestras tienen el carácter de lenguas menores (3).
La cultura que una lengua trae consigo no es algo marginal en la tarea cotidiana de un analista, sino que está en su mismo hueso. Nuestra clínica se configura en un espacio de intersección singular, efímero, entre un modo de escucha (formateado por nuestras teorías), la ética particular que nos atraviesa, y un modo de hablar único a través del cual, cada vez que alguien habla -o teoriza- lo hace también un determinado contexto cultural.
Durante muchos años Latinoamérica ha funcionado, para Europa -el lugar donde el psicoanálisis fue inventado y donde las más nobles de nuestras tradiciones vieron la luz- como un territorio de ultramar en donde aplicar los “diseños” metropolitanos. Muchas veces hemos sido sucursales, cuando mucho franquicias, de usinas epistémicas transatlánticas. Nadie espera que una innovación surja de los márgenes y a veces nosotros mismos, identificados con las antiguas potencias coloniales, nos hemos esmerado en ser los mejores discípulos (4). La maravilla que el movimiento antropofágico puso de relieve es que hay otro modo posible de vincularse con el mundo (5).
En otras instituciones -las lacanianas, por ej.- la situación es más grave aun, y las contradicciones se resuelven con mano de hierro y dogmatismo, sin lugar para el disenso. Allí el único color dominante es el gris.
Pero no se trata de presentarnos como un arcoiris ecléctico bien pensante y sin consecuencias, sino de reconocer que nuestra institución -su junta directiva en particular- es también ágora y palestra, lugar para poner en juego las diferencias y hacerlas oír con acento inequívocamente latinoamericano. No para oponernos al saber que la tradición nos ha legado, sino para hacerlo más productivo y fértil. Y por qué no para ir más lejos, para ampliar el espectro de lo pensable a través de las teorías que heredamos, para hacerle lugar no solo a los colores maravillosos de Benetton sino también a lo que aun hoy permanece invisible, a lo que no se sabe, a lo infrarrojo o lo ultravioleta, tanto de la especie humana como de la disciplina que mejor la aborda en su singularidad.
Imagino una institución con ese espíritu, menos preocupada por decir API en vez de IPA que en innovar y mutar con los tiempos, manteniendo a la vez aquello de la tradición que resiste, en un maravilloso anacronismo, contra las tentaciones de la época. Me imagino una institución más cerca del espíritu de los pioneros que se sabían exploradores de lo desconocido, más cerca de Freud que del atildado Jones o Eitingon el codificador.
En la época que nos toca, en el vórtice de una mutación vertiginosa, no hay lugar para la ortodoxia inercial o el gatopardismo, salvo que querramos convertirnos en una antigualla. Tampoco se trata solo de declamar el pluralismo, sino de extraer de él sus consecuencias.
Quizás los analistas latinoamericanos debamos proponernos un lugar más protagónico, tanto en lo político como en lo epistémico. Atrevernos a ello. Que seamos custodios de la tradición psicoanalítica no significa que solo nos quede el destino de repetirla… ¿Seremos capaces de imaginar una IPA cambiando con los vientos frescos que soplan desde nuestra región?
Notas:
(1) Podríamos preguntarnos, ¿por qué no el portugués?, cuando el porcentaje de miembros que analizan y piensan en esa lengua es el doble de los de lengua francesa y poco menos que los de lengua alemana…
(2) Según la feliz ocurrencia de Stefano Bolognini.
(3) Con toda la potencia creativa que una lengua menor entraña (Horenstein, M., Psicoanálisis en lengua menor, Viento de Fondo, Cba., 2011
(4) Lejos está esta situación de reducirse a Latinoamérica, pues en buena parte de los países europeos, encandilados con el saber de ciertas capitales, la situación es idéntica.
(5) Y los recientes premios concedidos a proyectos incubados en Brasil son sólo una confirmación, de muchas más que están por venir…
(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores)
Categoría: Instituciones psicoanalíticas
Palabras clave: IPA/pluralismo/”lengua menor”/tradición/invención
Colega, haz clic en el siguiente enlace para debatir el tema con los lectores de nuestra página de Facebook: