Observatório Psicanalítico – OP 371/2023

Boa tarde

Nós, da Curadoria do OP, convidamos os candidatos latino-americanos ao Board da IPA para escreverem um ensaio sobre algum acontecimento sociopolítico, cultural  ou institucional. 

A seguir, apresentamos o texto escrito por Monica Vorchheimer, da Associação Psicanalítica de Buenos Aires. 

Bem-vinda Mônica!

Equipe de Curadoria 

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Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

“Todos mentem”

Monica Vorchheimer (APdeBA) – Argentina 

Voltando da Patagônia a caminho do aeroporto de Buenos Aires, após o descanso que significou contemplar a majestosa paisagem do sul da Argentina, suas belezas naturais e seu silêncio, o motorista do carro que me levava apontou para as montanhas à frente. Pergunto se aquilo era pré-cordilheira, mas ele esclarece que era estepe, uma área sem vegetação e com temperaturas mais frias e tórridas que Bariloche. E acrescenta: “Ali vivem os mapuches de verdade, não esses falsos que aparecem na TV, aproveitadores corruptos. Aqueles lá de cima são artesãos genuínos, não aquela caricatura de indígenas. Logo em seguida, ele faz um discurso no qual destaca os benefícios e as riquezas de nosso país e a tristeza de que governo após governo não há uma saída. Ele não soa como um homem ressentido. Você pode dizer que ele ama seu país. Mas carrega consigo uma dor imensa, a de quem não vê futuro porque “todos aqui roubam ou mentem” e “não importa qual governo esteja no poder, são todos iguais”.

Como é possível pensar a realidade sob a premissa de que todos mentem ou roubam? Qual é o efeito de tal ceticismo e desesperança? Aonde leva esse “são todos iguais”?

É comum que, se uma pessoa daltônica for questionada sobre a cor de algo que ela vê, ela ficará irritada ou dará uma resposta para se livrar do problema. Por esse motivo, eles geralmente não querem ser questionados sobre cores, porque sabem exatamente que sua visão é diferente ou pelo menos duvidosa em comparação com a maioria das pessoas. Alguém que é daltônico sabe que não vê como a maioria. Se a licença for permitida, podemos supor que eles estão cientes de que seus olhos, como os políticos a que meu taxista se referia, “mentem para eles” e, portanto, não são confiáveis.

Embora seja amplamente aceito o lugar do observador na apreensão de qualquer realidade, assumindo esse mesmo observador o caráter de um ser enganado, a quem se mente, ele se vê, dessa forma destituído de seu lugar de pensamento. Se você for apenas objeto de enganos, roubos e mentiras, então não poderá mais dar crédito ao observador, que se perderá em um mar de amargura onde o grande ausente é a experiência da verdade. A premissa da mentira como pré-conceito, substitui o julgamento porque antecede a experiência, é um a priori. Mais importante: se você não pode acreditar, também não pode hesitar. Paradoxalmente, você só pode ter certeza. Acreditar cegamente é o outro lado da moeda do descrédito absoluto e, portanto, da perda do julgamento. Já sabemos que a credulidade e a ingenuidade são o inverso da paranoia.

Quando uma afirmação adquire o caráter de convicção indiscutível, ela opera como obstáculo ao novo. De fato, a cultura constrói o que se estabelece com a argamassa de pontos incontestáveis que, ao serem compartilhados, esculpem a tradição e também alimentam vários fanatismos –antipensamentos – que reduzem a complexidade e resistem à mudança. Viver em um mundo polarizado como este, atormentado por teorias da conspiração, notícias falsas e suposições de que “todo mundo está mentindo”, fragmenta nossas sociedades e nos desafia como psicanalistas em nossas vidas pessoais, em nossas práticas clínicas e em nossos laços comunitários e sociais.

Naturalmente, nenhum observador é capaz de apreender a realidade se por realidade entendemos uma certeza inequívoca; mas o caso é diferente se não atribuirmos mais uma fragilidade para considerar o que é verdade e mentira ou realidade e engano, mas uma incapacidade estrutural devido ao fato de que as regras do jogo estabelecem essa impossibilidade radical: elas mentem para nós. Se existe uma dimensão ética implícita na forma de ver e pensar a “realidade”, haverá consequências na forma como cada um de nós vive a sua vida, na forma como abre espaço para o outro que faz parte do nosso enredo vincular.

Aceitar que vivemos em um mundo de múltiplas realidades, nas quais todas podem ser válidas, legítimas, é uma afirmação mais fácil de formular do que aceitar profundamente, e nossos narcisismos de grandes e pequenas diferenças sabem disso. Um desentendimento tende a levar muito mais facilmente a descartar o outro do que a assumir a responsabilidade de pensar no que o outro pode realmente estar certo, algo que nos distancia da nossa tendência a acreditar naqueles que concordam com nossos desejos.

Ninguém está isento de ser capturado por uma operação como a do taxista de Bariloche. Nem mesmo para olhar a realidade política, nossas teorias, nossas práticas ou nossas sociedades. Saber disso é o melhor recurso para nunca abandonar a autoanálise e proteger-nos mais da nossa arrogância, onisciência e onipotência, cuidar dos outros, interessar-nos pelo diferente, evitar fenômenos desumanizadores e salvaguardar um pensamento que continua a mover-se sem ficar estagnado nas certezas, no fanatismo e na desesperança. Fazer do mal-estar na cultura um corriqueiro infortúnio civilizatório atravessado por sólidas e esperançosas democracias. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria:  Política e Sociedade 

Palavras-chave: Verdade, Mentira, Crença, Realidade, Observador

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Ensaio Original em Espanhol 

Observatorio Psicoanalítico – OP 371/2023

“Todos mienten”

Mónica Vorchheimer – APdeBA- Argentina

Volviendo de la Patagonia camino al aeropuerto de regreso a Buenos Aires, luego del descanso que significó la contemplación del paisaje majestuoso del sur argentino, sus bellezas naturales y su silencio, el conductor del coche que me trasladaba señala las montañas del frente. Le pregunto si eso era pre-cordillera, pero me aclara que era estepa, un área carente de vegetación y de temperaturas más frías y tórridas que Bariloche. Y agrega: “Allí viven los verdaderos mapuches, no estos de mentira que salen en la tele, corruptos aprovechadores. Los de allí arriba son genuinos, artesanos, no esa caricatura de pueblos originarios”. Acto seguido, se explaya en una diatriba en la que resalta las bondades y riquezas de nuestro país y la tristeza de que gobierno tras gobierno no haya salida. No parece un hombre resentido. Se nota que ama su país. Pero lleva un inmenso dolor consigo, el de quien no ve futuro porque “acá todos roban o mienten” y “no importa cuál sea el gobierno de turno, son todos iguales”.

¿Cómo es posible pensar la realidad bajo la premisa de que todos mienten o roban? ¿Cuál es el efecto de semejante escepticismo y desesperanza?  ¿A dónde lleva aquello de “ son todos iguales”?

Es frecuente que si se le pregunta a una persona daltónica de qué color ve algo, se fastidie o dé una respuesta para salir del paso. Por eso, habitualmente no quieren ser preguntados por los colores, porque precisamente saben que su visión es diferente o al menos dudosa respecto de la mayoría de las personas. Alguien daltónico sabe que no ve como la mayoría. Si se me permite la licencia, podríamos conjeturar que son conscientes de que sus ojos, como los políticos a los que se refería el conductor de mi taxi, “les mienten” y por lo tanto, no confían en ellos.

Si bien es ampliamente aceptado el lugar del observador en la aprehensión de cualquier realidad, suponerle a ese mismo observador el carácter de un ser engañado al que le mienten, todos, lo destituye de su lugar pensante. Si sólo se es objeto de engaños, robos y mentiras pues ya no se podrá darle crédito al observador, quien estará perdido en un mar de amargura donde el gran ausente es la experiencia de la verdad. La premisa de la mentira en tanto preconcepto, sustituye al juicio por cuanto precede a la experiencia, es un a-priori. Más importante aún: si no se puede creer, tampoco se puede vacilar. Paradójicamente, sólo se pueden tener certezas. Creer ciegamente es la otra cara de la moneda del descrédito absoluto y por lo tanto, la pérdida del juicio. Ya sabemos que la credulidad, la ingenuidad, son el reverso de la paranoia.

Cuando una afirmación adquiere el carácter de una convicción indiscutible opera como un obstáculo frente a lo nuevo; de hecho, la cultura construye lo establecido con la argamasa de puntos incuestionables que, compartidos, cincelan la tradición y también alimentan fanatismos variopintos – anti-pensamientos- que reducen la complejidad y resisten al cambio.  

Vivir en un mundo   polarizado como éste, plagado de teorías conspirativas, fake news y premisas del tipo “todos mienten” fragmenta nuestras sociedades y  nos desafía como psicoanalistas en nuestras vidas personales, en nuestras prácticas clínicas, en nuestros lazos sociales comunitarios.

Naturalmente que ningún observador es capaz de aprehender la realidad si por realidad nos referimos a una unívoca, certera; pero distinto es el caso si atribuimos ya no una   fragilidad para considerar qué es verdad y mentira o realidad y engaño, sino una incapacidad estructural debido a que las reglas de juego establecen esa imposibilidad  radical: nos mienten.

Si hay una dimensión ética implícita en la forma de ver y pensar la “realidad”, habrá consecuencias en la forma en que cada uno de nosotros viva su vida, en la forma en que hagamos lugar al otro que forma parte de nuestra trama vincular.

Aceptar que vivimos en un mundo de pluri- realidades diferentes, todas las cuales pueden ser válidas, legítimas, es una afirmación más sencilla de formular que de aceptar profundamente y nuestros narcisismos de las grandes y pequeñas diferencias saben de ello. Un desacuerdo suele conducir a desestimar al otro mucho más fácilmente que a asumir la responsabilidad de pensar en qué el otro puede realmente tener razón, algo de lo que nos aleja nuestra tendencia a creer en aquellos que están de acuerdo con nuestros deseos.

Nadie está exento de ser capturado por un funcionamiento como el del taxista de Bariloche. Ni para mirar la realidad política, nuestras teorías, nuestras prácticas o nuestras sociedades. Saberlo es el mejor recurso para no abandonar nunca el autoanálisis y ponernos más a resguardo de nuestra arrogancia, omnisciencia y omnipotencia, para cuidar del semejante, interesarnos por lo diferente evitando fenómenos deshumanizantes y salvaguardar un pensamiento que siga en movimiento sin anquilosarse en certezas, fanatismos y desesperanza. Hacer del malestar en la cultura un infortunio civilizatorio ordinario atravesado por democracias sólidas y esperanzadoras.

(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores)

Categoría: Política y Sociedad

Palabras clave: verdad, mentira, creencia, realidad, observador 

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Tags: Crença | mentira | Observador | Realidade | Verdade
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