Observatório Psicanalítico – OP 364/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Pra que a vida nos dê flor

Carolina Freitas (SBPdePA) 

Adormeci, sábado à noite, embalada pelas belas canções e melodias de Milton Nascimento, depois de assistir a um especial na televisão aberta. Essa geração da música popular brasileira canta nossa história. Suas letras são cheias de mensagens cifradas por conta da censura instaurada naquela época. Eles lutavam por liberdade. O “Clube da Esquina” por exemplo, liderado pelo mestre Milton Nascimento, trazia a utopia de um mundo melhor. Herdeiros do movimento hippie, a onda do Summer of Love Californiano enchia os corações de esperança no amor livre. Fertilizavam, enfim, amor entre todos. Ao invés de armas, flores e muita tolerância com o diverso, gerando novas possibilidades de ver e sentir o outro — esse que também vive em cada um de nós.

Demarcada pela repressão do regime militar no Brasil, a arte surge como expressão de nossa existência e é utilizada como mais uma forma de linguagem para o mundo. Nossas vozes inconformadas abrem alas, germinando esperança. Esses artistas são meus heróis, lutaram para serem senhores de seus desejos, emanaram liberdade, amor e respeito à diversidade: pilares de uma sociedade utópica.

Contudo, muitos de seus amigos, artistas, professores, intelectuais, mentes pensantes e que resistiam à sujeição ao sistema arbitrário e perverso em que vivíamos, brasileiros inquietos e militantes por um mundo mais igualitário, precisaram partir, ou melhor, foram exilados, tocados para fora de seu próprio país, arrancados de sua querência e de seu lugar de pertença. Eis um capitulo lamentável de nossa História.

Nasci em 1976, ano de implantação do regime militar na Argentina, e meus pais, recém-casados, passaram a morar na capital portenha. O romance dos primeiros tempos foi atravessado pelo terror social que os hermanos viviam:

“A repressão política teve como efeito o silêncio. Silêncio é saúde, como proclamavam muitos cartazes exibidos por toda parte” (compilado por Janine Puget e René Kaës, pg.27, Violencia de Estado y Psicoanálisis, 1988).

Claramente, isso gerou muita inquietação nos psicanalistas, pois essa orientação do regime político da época é oposta à nossa crença, por meio da qual entendemos que a palavra nos liberta e nos constitui como sujeitos de nossa própria história. Nesse sentido, os Novos Baianos, o Clube da Esquina e Tropicália são movimentos musicais de grande magnitude para a manutenção da palavra verbal, simbolizando, em suas letras, a resistência da cultura através da arte. Quem canta seus males espanta, como diz o ditado popular.

Esses artistas tornaram-se meus ídolos. Graças a seus investimentos e talentos na música, literatura, teatro, dança e tantas outras expressões de arte, criaram um refúgio para os tempos de chumbo, no qual as privações, perversões, torturas e terror faziam parte do nosso cotidiano.

Vale ressaltar que, no Brasil, os ditadores e torturadores não pagaram por seus crimes, uma vergonha para a história nacional, bem diferente do que os nossos vizinhos argentinos fizeram. 

Estes últimos não foram favoráveis à anistia, de modo que os crimes cometidos, em sua ditadura, foram julgados. Podemos acompanhar um pouco dessa trama no recente filme “Argentina,1985”. Infelizmente, ele é muito atual, refletindo a cegueira branca que José Saramago descreve em Ensaio Sobre a Cegueira (1995), na atualidade de uma classe média desinformada, negacionista e vulnerável ao seu próprio narcisismo:

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” (Epígrafe de Saramago).

Acordo, após sonhar com as utopias de um mundo melhor, com a troca de governo no Brasil na primeira semana do ano, vibrando com a alternância de poder. Posso dizer que, sim, ajudei a eleger o meu candidato. Ao longo dos quatro anos passados, respeitei a escolha que feriu minhas crenças em políticas de saúde pública, projetos sociais, educação, segurança, entre outras tantas discordâncias.

No dia 08 de janeiro de 2023, testemunho o silêncio, a ausência de legalidade e comandos para a defesa de nossa democracia. Parece indizível, como um silêncio que não se explica:

“De certa maneira é o silêncio que deve falar” (Erling Kagge, Silêncio-Na era do ruído, pg. 19, 2017).

O silêncio que gritava dentro de mim e confundia-se com o vento, é agora vendaval, avalanche de instintos agressivos e destrutivos orquestrados por alguns que se sentem no direito de silenciar nossa Constituição Federal e direcionar seus impulsos mais hostis e irracionais a atos de terrorismo social:

“A violência de estado produz uma ruptura em intercâmbios sociais de todo o tipo e leva ao isolamento, ao silêncio. A necessidade de criar baluartes está diretamente relacionada à desmentida e ao terror” (compilado por Janine Puget e René Kaës, pg.27, Violencia de Estado y Psicoanálisis, 1988).

Quando entendi que estávamos vivendo um ataque terrorista, previamente acordado e alinhado, senti o impacto de uma violência social, uma catástrofe rompendo com o andamento de nossas vidas. Jornais no mundo inteiro noticiavam o que estávamos vivendo em tempo real no Brasil, um cenário de guerra e destruição.

Dessa vez, atacados por um poder alucinado na realização de um gozo interminável, afastado do princípio da realidade e fugindo das frustrações, fomos ferozmente atingidos por nós mesmos: destruímos nossos registros históricos, nossa cultura representada por obras de arte como As Mulatas, de Di Cavalvanti, que nos traz a beleza das mulheres negras, as mesmas que foram intensamente atacadas no governo anterior. Coincidência? Como bons freudianos, sabemos que não.

Certamente, não proponho que esses sujeitos, movidos pela manutenção de seus privilégios, soubessem de todo o valor simbólico daquela e de outras obras atacadas, mas não poderia silenciar a dor sentida na carne como mulher que luta pela igualdade de gênero e respeito à alteridade. Lembro dos ensinamentos da sábia Chimamanda, em seu livro “Sejamos todos feministas”( 2012), onde pontua:

“A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte de nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura” pg. 48.

O ataque foi certeiro, planejado, calculado. O que houve com nossas defesas? O que nos tornou vulneráveis e facilmente atingidos? O atentado simultâneo ao Supremo Tribunal Federal, ao Palácio do Planalto e ao Congresso Nacional, parecia mirar três objetivos: destruir a democracia vigente no país, desestabilizar o governo e gerar o caos.

Escrevo embalada pela utopia de que o registro de nossas memórias, mesmo as mais tristes e repugnantes, sirva como declaração de nossa inconformidade com esses atos de violência, acreditando que falarmos, pensarmos e analisarmos a nós mesmos possa nos oferecer a oportunidade de reconstruir nossa memória histórica e cultural. Não ao Silêncio! Não à Anistia!

Ao fundo, escuto a música Coração de Estudante na voz de Milton Nascimento:

“Quero falar uma coisa…

Mas renova-se a esperança

Nova aurora a cada dia

E há que se cuidar do broto

Pra que a vida nos dê flor-or e fruto”

Volto a sonhar que a arte nos salve de nós mesmos e crie alternativas de saída para nossos impulsos hostis, proliferando o florescer a cada aurora de amor e respeito a esse outro que também faz parte de mim.

Minha saudação aos Brasileiros: UBUNTU: “Eu sou porque tu és”.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e sociedade

Palavras-chave : Terrorismo, Silêncio, História cultural, Arte, Esperança 

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Tags: arte | esperança | História cultural | Silêncio | terrorismo
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