É com alegria que informamos que, a partir de agora, teremos a contribuição de ensaios de colegas estrangeiros sobre “os acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.”
Esta interlocução entre diferentes países busca compor o que a psicanalista Samantha Nigri (SBPRJ) nomeou como um “multilinguismo psicanalítico” em seu trabalho apresentado no último congresso da FEPAL, sobre a construção do “Projeto Ponte entre Línguas”, que leva em conta o valor da palavra na constituição do sujeito possibilitando adentrar o idioma do outro, expandindo os laços e ampliando o alcance da psicanálise.
Para inaugurar este momento do OP, publicamos hoje o ensaio “As invasões bárbaras”, do colega Mariano Horenstein (da Associação Psicanalítica de Córdoba), sobre os ataques ocorridos na Esplanada e Praça dos Três Poderes, em Brasília, no último domingo – 8/1/2023.
Há algum tempo a nossa Curadoria imaginava essa possibilidade de conversar com aqueles que podem pensar esses acontecimentos contemporâneos sob o ponto de vista do estrangeiro, movimentando e enriquecendo o nosso dispositivo.
Lembramos a todos que o OP, enquanto ideia, nasceu num congresso internacional, o da Fepal em Cartagena das Índias, Colômbia, onde o encontro e o desencontro das línguas português e espanhol atravessaram os debates psicanalíticos.
Bem-vindo Mariano!!
A seguir, seu texto, apresentado primeiramente em Português e em seguida na sua língua original.
Ensaios sobre eventos sociopolíticos, culturais e institucionais no Brasil e no Mundo
As invasões bárbaras
Mariano Horenstein – APC (Associação Psicanalítica de Córdoba)
Ontem, domingo, desfrutei de um dia livre de notícias, alheio ao mundo…
Para um cidadão comum – como somos nós, os psicanalistas – seguir os fatos com preocupação, expressar uma opinião ou discutir na nova ágora das redes sociais, pode ser um gesto de compromisso tanto quanto ocupar as ruas, quando necessário, em defesa de ideias que requerem nossos corpos para serem sustentadas.
Como se eu fosse merecedor de um castigo por minha despreocupação neste último domingo, minha neurose me despertou hoje com a notícia de um país que, não sendo o meu, é também meu. Um país que funciona como uma referência inevitável no continente ao qual pertenço, um país onde as situações que acontecem irradiam efeitos em toda a região. Portanto, se as coisas se sucedem no Brasil como os eventos de ontem, há muito mais cidadãos preocupados do que aqueles que têm um passaporte brasileiro.
Nesta segunda-feira acordei com a notícia de que os bárbaros haviam chegado.
Parece incrível que a ruptura da ordem democrática seja uma opção na América Latina mesmo com a trágica história das ditaduras, que numa sincronia suspeita como uma espécie sinistra de coreografia, assolou nosso continente há apenas algumas décadas.
É verdade que a própria noção de democracia vem sendo maltratada, até mesmo desvalorizada. É certo também que ela não alcança as respostas que os cidadãos precisam, nem torna as nossas sociedades escandalosamente injustas mais igualitárias. Também é certo que a corrupção faz parte do senso comum de nossos líderes e de nossos povos. E que a corrupção é também uma corrosão do vínculo social, o vínculo que nos permite reconhecer-nos uns aos outros como uma comunidade imperfeita.
No entanto, também é certo que em nenhum outro sistema de governo a psicanálise pode prosperar. Quando vemos ideias religiosas se tornarem lemas políticos, quando a força se transforma em razão, a própria razão se perverte. A cultura mostra a sua face oposta da barbárie em segundos.
Um domingo, apenas, que deixo de ler as notícias e os bárbaros estão entre nós…
Fascinam-me os bárbaros. É uma palavra que nasce do desprezo, mas que também sabe transformar esse desprezo em um traço de identificação irreverente. Bar bar bar, blá blá blá blá, assim soavam as outras línguas aos ouvidos gregos – quando o grego era a língua franca da civilização. Assim surgiu a palavra “bárbaro”: aqueles que não falavam grego eram bárbaros. Nesse sentido, assumirmo-nos como bárbaros – os que hoje não falam nem pensam na nova língua franca, o inglês – abarca um potencial saudável para o pensamento.
Calibán é um bárbaro, sem ir muito longe.
Mas a barbárie também é outra coisa.
Quando os impérios se enfraqueciam, hordas bárbaras invadiam. Assim terminaram os impérios que pareciam durar para sempre, quando então os bárbaros, mantidos à distância nas fronteiras, sentiram-se capacitados a invadir as cidades, vandalizando tudo o que estava em seu caminho.
Hoje, numa época em que o imperialismo foi reconfigurado e está em crise, vemos os bárbaros irromperem quando o império da lei fraqueja. A democracia, essa débil fortaleza das maiorias, repousa sobre o império da lei. Nós, os psicanalistas, somos testemunhas dos efeitos subjetivos catastróficos quando o império da lei vacila (tendo sempre como referência final a lei que proíbe o incesto). E no plano coletivo, o mesmo se aplica. Para além das conjunturas políticas, sejam elas autogolpes em tentativas ou completos como aconteceu no Peru, a invasão do Capitólio por hordas descontroladas, populismos neofascistas que se levantam aqui e ali, de revolucionários românticos que se tornaram ditadores, ou simplesmente maus perdedores que fingem ser tão iluminados a ponto de ignorar a escolha da maioria, os efeitos sociais serão devastadores.
Especialmente se os recursos institucionais não conseguirem detê-los, ou se falharmos, com as armas da razão, em travar uma batalha discursiva na qual os psicanalistas não só têm muito a dizer como também têm a obrigação de dizê-lo. Não só porque sabemos, como poucos outros, sobre o valor estruturante da legalidade no psiquismo individual e no coletivo (para compreender melhor isto, basta ler o que o jurista Pierre Legendre, em interlocução com a psicanálise, ensinou sobre os efeitos devastadores do nazismo), mas também porque aprendemos – com Walter Benjamin – que a barbárie não é apenas a destrutividade reprimida, mas o inverso exato das maiores aquisições culturais de nossa espécie.
A barbárie espreita, acampa sempre perto de nós e de nossas instituições.
Os vândalos em Brasília, como uma horda primitiva, não apenas atacaram a sede de um governo que havia acabado de conquistar a vitória nas eleições. Eles estavam tentando parar o tempo – ainda que tenham destruído apenas os relógios que o medem – e pôr em xeque a Referência que ordena. Pierre Legendre, guiado pela psicanálise, estudou o caso do cabo Lortie, que desencadeou um massacre contra o governo de Quebec, em 1984, assassinando os que estavam em seu caminho até sentar-se na cadeira do presidente do parlamento. Lortie estava psicótico, e sua agitação insana foi motivada pelo fato de que o governo tinha para ele o rosto de seu pai. Seu ataque homicida foi, na verdade, um parricídio.
Legendre – mesmo como advogado de defesa de Lortie – pediu que ele não fosse declarado inimputável, pois essa era a única maneira de salvar a humanidade do agressor que, ao atacar a encarnação da Lei, estava a desfazer – como os nazistas – a referência ordenadora da subjetividade, o lugar da Lei, de uma função paterna que figura como os poderes públicos encarnam na vida civil. O pacto de convivência se desfazia daquele modo, por isso era urgente restaurar certa legalidade que funcionava, tal qual um pai oferece a um filho, como o último recurso que o sustentava, como um arnês que o segurava ante o abismo.
Neste domingo, enquanto eu estava distraído, hordas bárbaras invadiram as paisagens cuidadosamente pensadas por Burle Marx, profanaram os edifícios projetados por Niemeyer, transformaram Brasília em um postal fantasmagórico da barbárie. Uma barbárie que estava lá, no reverso da civilização, do outro lado da fronteira.
Quem sabe, parte de nossa função analítica, como um dos ofícios da memória, seja lembrar em voz alta, sempre que necessário, esta constatação, este grito de alerta. Pois a barbárie está sempre à espreita e nada é garantia, nem mesmo o império da lei, que por mais imperfeito que seja, é a única coisa que nos separa do abismo.
Um psicanalista não deveria jamais se desligar do que está acontecendo fora do consultório. Nem mesmo aos domingos.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Tradução: Samantha Nigri (SBPRJ)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: Barbárie, Cultura, Razão, Lei, Parricídio
Imagem: Série “Tracción a sangre”, de Hugo Aveta, https://www.hugoaveta.com/soma
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Observatorio Psicoanalítico – OP 361/2023
Ensayos sobre acontecimientos sociopolíticos, culturales e institucionales en Brasil y en el Mundo
Las invasiones bárbaras
Mariano Horenstein – APC (Asociación Psicoanalítica de Córdoba)
Ayer domingo disfruté de un día libre de noticias, ajeno al devenir del mundo.
Para un ciudadano común -los psicoanalistas también lo somos- a veces seguir los hechos con preocupación, opinar, discutir en el nuevo ágora de las redes sociales, puede ser un gesto de compromiso. Tanto como ocupar las calles cuando es preciso, en defensa de ideas que requieren cuerpos para ser sostenidas.
Como si mereciera soportar un castigo por mi despreocupación del domingo, mi neurosis me despierta hoy con las noticias de un país que, no siendo el mío, lo es también. Un país que funciona como una referencia ineludible en el continente al que pertenezco, un país donde las cosas que suceden irradian efectos en toda la región.
Entonces, si pasan cosas como las que suceden en Brasil, los ciudadanos preocupados somos muchos más que los que tienen pasaporte brasileño.
Este lunes me despierto con la noticia que han llegado los bárbaros.
Parece mentira que aun con la historia trágica de las dictaduras que en sospechosa sincronicidad, como una coreografía siniestra, asolaron nuestro continente apenas unas décadas atrás, la ruptura del orden democrático sea una opción en Latinoamérica.
Es cierto que la noción misma de democracia está vapuleada, incluso devaluada. Es cierto que no alcanza a dar las respuestas que los ciudadanos precisan ni hacer más equitativas nuestras sociedades injustas hasta el escándalo. También es cierto que la corrupción forma parte del sentido común de nuestros dirigentes y nuestros pueblos. Y que la corrupción es también corrosión del lazo social, ese lazo que nos permite reconocernos como comunidad imperfecta.
Pero también es cierto que en ningún otro sistema de gobierno el psicoanálisis puede prosperar. Cuando vemos que ideas religiosas se convierten en lemas políticos, cuando la fuerza deviene razón, ésta misma se pervierte. La cultura muestra su contracara de barbarie apenas en segundos. Un domingo en que dejo de leer las noticias y están los bárbaros entre nosotros.
Me fascinan los bárbaros. Es una palabra que nace del desprecio, pero que también sabe convertir ese menosprecio en rasgo de identificación irreverente. Bar bar, bla bla, así sonaba a oídos griegos -cuando el griego era la lingua franca de la civilización- cualquier idioma que no fuera el de ellos. Así surge la palabra “bárbaro”: aquellos que no hablaban griego eran bárbaros. Asumirnos como bárbaros -quienes por ejemplo hoy no hablamos ni pensamos en la nueva lingua franca, el inglés- tiene un potencial saludable para el pensamiento.
Calibán es un bárbaro, sin ir más lejos.
Pero la barbarie también es otra cosa.
Cuando los imperios se debilitaban, las hordas bárbaras invadían. Así terminaban imperios que parecían durar para siempre, cuando los bárbaros, mantenidos a raya en las fronteras, se sentían habilitados a irrumpir en las ciudades vandalizando todo lo que encontraban a su paso.
Hoy, en una época donde el imperialismo se ha reconfigurado y está en crisis, vemos que los bárbaros irrumpen cuando el imperio de la ley flaquea. La democracia, esa débil fortaleza de las mayorías, se asienta en el imperio de la ley. Los psicoanalistas somos testigos de los efectos subjetivos catastróficos cuando trastabilla el imperio de la ley (donde, en última instancia, siempre es la ley de prohibición del incesto la referencia última). En el plano colectivo sucede otro tanto. Y más allá de las coyunturas políticas, se trate de autogolpes en grado de tentativa o consumación como ha sucedido en Perú, del asalto al Capitolio de hordas envalentonadas, de populismos neofascistas que ascienden aquí o allí, de revolucionarios románticos devenidos dictadores de folletín, o simplemente de malos perdedores que se pretenden tan iluminados como para desconocer la elección de la mayoría, los efectos sociales serán devastadores.
Sobre todo si los recursos institucionales no logran ponerles coto, o si no logramos, con las armas de la razón, dar pelea en una batalla discursiva donde los psicoanalistas no solo tenemos mucho que decir, sino que tenemos además la obligación de decirlo. No solo porque sabemos como pocos acerca del valor estructurante de la legalidad en el psiquismo individual y colectivo (basta leer lo que el jurista Pierre Legendre, en interlocución con el psicoanálisis, ha enseñado sobre los efectos devastadores del nazismo para entenderlo), sino porque hemos aprendido -con Walter Benjamin- que la barbarie no es solo la destructividad reprimida sino el exacto reverso de los mayores logros culturales de nuestra especie. La barbarie acecha, acampa siempre cerca de nosotros y nuestras instituciones.
Los vándalos de Brasilia, como una horda primitiva, no atacaron tan solo la sede de un gobierno que acababa de triunfar en las elecciones. Intentaban detener el tiempo -aunque apenas lograran destruir los relojes que lo miden- y jaquear la Referencia ordenadora. Pierre Legendre, orientado por el psicoanálisis, estudió el caso del cabo Lortie, quien desató una masacre en el gobierno de Québec en 1984, asesinando a quienes encontró en su paso hasta sentarse en el sillón del presidente del Parlamento. Lortie estaba psicótico, y su ataque loco estaba motivado en que el gobierno tenía para él el rostro de su padre. Su ataque homicida era en verdad un parricidio.
Legendre -aun siendo abogado defensor de Lortie- pide que no sea declarado inimputable, pues ése era el único modo de salvar la humanidad del atacante, quien al atentar contra la encarnación de la Ley deshacía -como los nazis- la referencia ordenadora de la subjetividad, el lugar de la Ley, de una función paterna que figuras como los poderes públicos encarnan en la vida civil. El pacto de convivencia se deshace de ese modo, por lo que urge restaurar una legalidad que, como lo que un padre ofrece a un hijo, es el último recurso que lo sostiene como un arnés frente al abismo.
Este domingo, mientras yo estaba distraído, hordas bárbaras invadieron los paisajes pensados con cuidado por Burle Marx, profanaron los edificios diseñados por Niemeyer, hicieron de Brasilia una postal fantasmagórica de la barbarie. Una barbarie que estaba ahí, en el reverso de la civilización, al otro lado de la frontera.
Quizás parte de nuestra función analítica, en tanto uno de los oficios de la memoria, sea recordar en voz alta, siempre que haga falta, esa constatación, ese grito de alerta. Pues la barbarie acecha siempre y no hay nada garantizado, ni siquiera el imperio de la ley, que por más imperfecta que sea es lo único que nos separa del abismo.
Un psicoanalista no debiera desconectarse nunca de lo que sucede puertas afuera del consultorio. Ni siquiera en domingo.
(Los textos publicados son responsabilidad de sus autores)
Categoría: Política y Sociedad
Palabras-clave: barbarie, cultura, razón, ley, parricidio
Imagem: Serie “Tracción a sangre”, de Hugo Aveta, https://www.hugoaveta.com/soma
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