Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
A minha avó da Praça de Maio
Rafaela Degani (SBPdePA)
Domingo, dia 20 de novembro, soubemos da morte de Hebe de Bonafini. Lider e cofundadora do movimento de mães que se reúnem toda quinta-feira, há mais de quarenta anos, para cobrar informações sobre seus filhos desaparecidos, torturados e mortos na ditadura-civil-militar da Argentina. Todas as quintas-feiras as bravas mães da Praça de Maio se encontram em busca de justiça e verdade. Todas as quintas-feiras. Dia 17 de novembro de 2022 essas bravas mulheres realizaram a marcha de número 2327. Tal feito só poderia ser praticado por mães, quem ousa discordar disso?
No mesmo domingo, 20 de novembro, minha avó Sara morreu, aos 96 anos. Minha avó foi e não foi uma dessas incansáveis mães que esperaram por notícias de seus filhos. Em 1976, meu tio Jorge Alberto Basso desapareceu em Buenos Aires, sua terra natal. Em um outro ensaio publicado pelo Observatório Psicanalítico (OP 131/2019) contei um pouco dessa história
Gosto de imaginar que se minha avó tivesse permanecido em Buenos Aires seria habitué da praça. Há rumores que ela esteve se encontrando com o grupo quando voltou à Argentina para buscar notícias sobre o filho. Notícias que nunca chegaram, um luto impossível e preenchido pelo silêncio que atravessou gerações. Os detalhes para mim já não importam, mas sim a história que eu gosto de criar e contar sobre ela. Sou sua única neta, filha da sua única filha mulher. Em um de nossos últimos encontros, mês passado, estive em sua casa organizando um álbum de fotografias antigas. Quase todas em preto e branco, na maioria delas minha avó aparecia sorridente. Várias delas com os filhos ainda pequenos, em Buenos Aires, Rio Grande e em viagens que fizeram por aí. Nesse dia tive coragem de perguntar para ela se tinha sido feliz, “acho que em algum momento fui sim”, me respondeu.
Demorei anos para entender o peso da história da minha avó e como isso deságua em mim. Só entendi com a ajuda da psicanálise, esse espaço privilegiado de escuta. Colocar em palavras a própria história, se apropriar das heranças e criar uma narrativa assimilável, interrompendo a angústia sem nome, nem que seja até a próxima sessão. É um trabalho sem fim, a palavra nunca alcança, mas nessa brincadeira vamos transformando a vida numa ficção capaz de ser contada e passada adiante. Não vou até a Praça de Maio toda quinta-feira, mas há 20 anos frequento insistentemente os divãs de analistas, provavelmente em busca de memória, justiça e verdade. A minha verdade, que invento como posso.
No mês de dezembro vou lançar meu primeiro romance, chama-se “Menina em Claro”, e será publicado pela editora Patuá. Uma história sobre a complexidade de uma família comum. A história da minha vó Sara foi boa parte da inspiração para esse livro. Ela foi uma leitora voraz, e me dói saber que não vai estar aqui para ler e me ver lançar esse livro. Foi por pouco, menos de um mês, mas a vida é como é. Eu não perdi um filho, eu não sou uma das mães da Praça de Maio, mas me identifico com a tenacidade dessas mulheres que não desistem. Eu não desisto de reescrever minha história, de tentar encontrar as palavras que aplaquem as dores. Penso que minha avó procurava nos livros as palavras que ela mesma não encontrava. Queria que ela visse que eu encontrei algumas e me aventurei a falar em nome dela e em nome próprio.
Para encerrar, só gostaria de compartilhar mais uma pequena cena. Recentemente li uma entrevista do psicanalista argentino Mariano Horenstein, publicada no livro “Conversaciones de diván”, com a artista Sophie Calle, onde ela dizia que toda vida é uma ficção. Essa frase não me saiu da cabeça por dias e penso que ontem me fez sentido. Quando eu chorava com a notícia da morte da minha avó, meus dois filhos se aproximaram e colocaram as mãozinhas pequenas no meu rosto e me perguntaram o que tinha acontecido com a Bisa, recorri ao clichê sobre virar uma estrelinha, mas naquele momento acreditei mesmo no que dizia, e confesso que acredito até agora. Eu acredito que boas histórias são poções mágicas contra a dor, e essa é a herança que eu quero deixar.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Homenagens
Palavras-chave: Mães da praça de maio, Luto, Psicanálise, Ficção
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