Observatório Psicanalítico – OP 350/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

As “cicatrizes da desrazão” nos bastidores da Globonews

Mônica do Amaral (SBPSP)

Com este termo, “cicatrizes da desrazão”, o filósofo Theodor Adorno pretendeu se referir à racionalização que, segundo ele, “é ela mesma uma inverdade, na medida em que não representa toda a verdade do sujeito e, por meio de sua função e de sua indiferença em relação à gênese subjetiva, serve para camuflar o mero interesse particular” (Adorno, 1968, p.82).

Qual teria sido a gênese subjetiva da verve verborrágica da jornalista Eliane Cantanhêde? Que, no afã de ensinar à primeira-dama “inexperiente” o lugar que ela deve ocupar, despejou no ar uma série de admoestações à Janja, que ousou ficar sentada ao lado da presidente do PT, Gleisi Hoffmann e do vice-presidente Geraldo Alckmin, enquanto Lula discursava na sede do Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), onde tem se reunido a equipe de transição do futuro governo recém-eleito. A crítica da jornalista, que se diz feminista até o último grau, era contra toda e qualquer participação de Janja no governo Lula, a começar do cerimonial da posse. E Cantanhêde dispara: “- Se o Presidente eleito foi o Lula, a atuação de sua esposa deve se restringir aos limites do quarto do casal”!

“Ora, teria Eliane Cantanhêde feito uma declaração como esta se Janja pertencesse à elite?”, escreveu Nathalí Macedo, criticando ainda o caráter machista e misógino da fala de jornalista. Em nenhum momento se referiu ao apelo civilizatório do discurso de Lula ou mesmo à capacidade do futuro presidente de se emocionar e chorar pela dor alheia, das quase 30 milhões de pessoas que hoje vivem na mais absoluta miséria no Brasil. Tampouco foi objeto de comentário da jornalista o amor e o apoio ao companheiro, demonstrados por Janja neste e noutros importantes momentos da vida de Lula, desde quando foi condenado pela operação Lava Jato. Parece que a Globo virou a página após as eleições, uma vez que, depois de criticar duramente Bolsonaro pela falta de sensibilidade para com a saúde e a fome do povo brasileiro, agora a questão que importa é a reposta que o governo Lula dará ao mercado, o perigo de com quem anda o futuro presidente – imagine, com ex-ministros do governo Dilma? Será o caos novamente. E para completar, dando espaço exagerado e indevido à sua jovem esposa. Nenhum comentário foi feito, por exemplo, que Janja, assim como Ruth Cardoso, é também socióloga e, ademais, militante em prol de causas sociais desde 1983.

Mas, então, qual o motivo de tamanha indignação com o protagonismo de Janja? A jornalista falou com veemência contra a ousadia de Janja, pois se ela não era presidente do partido nem vice-governadora, o que estaria fazendo ali sentada durante o discurso de Lula?. Janja estava simplesmente exercendo, diríamos nós, o direito de uma mulher esclarecida e militante de estar ao lado do marido em um momento importante como aquele, em que ele proferia um discurso de abertura de seu governo de transição, inclusive para firmar sua força perante as ameaças que grassam no país à sua posse. Não teria sido mais importante frisar estes aspectos do que se preocupar com o espaço que Janja teria no governo Lula?

É aí que a explicação dada pela jornalista assume o caráter de racionalização, quando ela diz que estava apenas querendo salientar a importância de se separar o público do privado. Ora, mas quando ela desfere críticas de natureza pessoal às atitudes de Janja, fazendo observações sobre se devia ou não estar sentada ao lado do marido, ou se devia se restringir à intimidade da alcova, é a jornalista que faz comentários de natureza privada à dimensão pública do papel da primeira-dama. Papel este que deverá ser negociado entre ela e o futuro presidente, ou mesmo com os membros do futuro governo, pois Janja evidenciou, desde a campanha, que não pretendia exercer um mero papel figurativo, ao contrário, pretendia ressignificar o papel conferido à primeira-dama.

Observe-se que Adorno, em um estudo aprofundado sobre a personalidade autoritária, nos anos 1950, associa-a não apenas ao antissemitismo, mas ao etnocentrismo e ao fascismo. E, como bem observou Iray Carone, uma de suas conclusões mais importantes foi que: “o objeto (os judeus, os negros, os homossexuais, etc.) de representações preconceituosas é interpermutável, porque ele cumpre uma função psicológica na economia psíquica do sujeito preconceituoso, de modo que as características do objeto do preconceito importam menos do que as características do sujeito preconceituoso” (Carone, 2012, p. 15). Sem esquecer que a tendência do sujeito preconceituoso é projetar sentimentos não admitidos nos outros – os out-groups, os quais passam a ser hostilizados.

Mas se Eliane Cantanhêde se diz feminista, como podemos classificar sua fala de misógina e machista? Acontece que seu feminismo é branco e de classe (abastada e de elite, no caso). Angela Davis já dizia em seu livro “Mulheres, raça e classe” (2016), que as opressões de classe e de gênero não eram as mesmas para a mulher negra, o que conferia outro caráter ao feminismo negro, apontando a importância de se atentar para a interseccionalidade das opressões. Nessa mesma linha, poderíamos dizer que o feminismo de Cantanhêde vai até certo ponto, ou seja, que defenda os direitos à participação da vida pública de uma mulher branca, rica e articulada, como Ruth, mas jamais de uma socióloga como Janja…ela que se ponha no seu lugar! Onde? Na alcova e na cozinha? “- Pois, ela não é presidente, não é líder política, o que ela estava fazendo ali?”, disse a jornalista, a propósito do dia do discurso de Lula no CCBB.

A TV Globo, talvez para se redimir do malfeito de Cantanhêde, entrevista Rosângela da Silva, a Janja, no programa Fantástico no último domingo, dia 13/11/22, momento em que ela teve a oportunidade de dizer a que veio. Ressignificar o papel da primeira-dama significa “lutar por algumas pautas importantes para as mulheres, para as famílias de um modo geral”, declarou. Quais seriam estas pautas? Mencionou o “combate à violência contra as mulheres, alimentação saudável, garantia de acesso a alimentos e o combate ao racismo”. Defende, pois, um feminismo identificado com as necessidades das mulheres em geral, mas com ênfase nas mulheres pobres, que não têm acesso a uma boa alimentação, que estão sendo maltratadas em casa e pela sociedade. E quando se refere também ao racismo, associa estas pautas ao feminismo negro e indígena, ressaltando a interseccionalidade das opressões de gênero, de classe e de raça.

Lilia Schwarcz fez um comentário interessante e contundente nas redes sociais, dizendo que seria importante que a jornalista revisse seu conceito de primeira-dama como mera figura decorativa do palácio, pois não será este o papel que Janja pretende exercer… e deixou uma dúvida, que podemos explorar aqui…. por que em nenhum momento elogiou a Janja, fazendo apenas comentários do tipo: “- Onde ela quer chegar, vai dar palpite em tudo? Até na nomeação de Ministro?…” Incomodou-a muito tudo isso, admitiu Cantanhêde. Ou seja, qual o tamanho do poder que será conferido a esta mera esposa do Lula, uma socióloga sem a projeção que teria tido Ruth Cardoso… Emerge aí, a meu ver, um puro preconceito de classe, sustentado por muita inveja… Por ser ela jovem, mulher, inteligente e que conquistou o amor e a confiança de um líder carismático e emblemático como o Sr. Luiz Inácio da Silva, o Lula? O único reconhecidamente capaz de vencer a ultradireita neste país, em tempos de tamanho retrocesso no campo da civilidade e no campo civilizatório.

Não se pode esquecer que a inveja, segundo Melanie Klein, em “Inveja e gratidão” (1991), é considerada um sentimento mais primitivo do que o ciúmes. Enquanto o ciúmes é movido pelo amor, pautado pela relação de objeto total, a inveja é experimentada em termos de objetos parciais, em que se cobiça alguma posse ou qualidade do objeto. A inveja experimentada pelo sujeito é alimentada pelo desejo de ser tão bom quanto o objeto aparenta ser, mas quando se vê impossibilitado de fazê-lo/sê-lo, tende a atacar o objeto, buscando destruir exatamente aquilo que parece tão bom, ou seja, as qualidades almejadas, e claro, idealizadas. Opera, muitas vezes, por projeção, despejando no outro tudo o que há de mais abjeto e não admitido em si mesmo, daí a virulência da ação e do discurso do sujeito movido pela inveja.

No caso do Brasil, como sustentou Lilia Schwarcz em seu livro “Sobre o autoritarismo no Brasil” (2019), é preciso olhar a herança escravocrata do país. Logo após a abolição, criou-se uma narrativa histórica que fez com que posteriormente, se naturalizasse a desigualdade – racial, de classe e de gênero, diríamos. Uma prática que se tornou comum aos governos autoritários, que tendem a “lançar mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder” (2019, p.19).

Quais seriam estas narrativas? As do mito da democracia racial (da harmonia racial); de que o Brasil é um país harmônico e sem conflitos; de que o brasileiro é avesso a hierarquias, portanto avesso ao distanciamento social; de que somos uma democracia plena; de que inexistem ódios de natureza racial, de religião e de gênero.

No entanto, de acordo com a autora, tais narrativas encobrem, na verdade, uma série de pilares que sustentam até hoje o autoritarismo brasileiro: o racismo, o mandonismo, o patrimonialismo, a corrupção, a desigualdade social, a violência, as opressões de raça e de gênero e a intolerância que hoje é generalizada contra todas as minorias.

Seria importante nos atermos ao mandonismo que se encontra associado ao racismo e demais opressões de classe e de raça, uma vez que o projeto de modernidade neste país jamais se desvinculou de uma aristocracia (com pretensão de nobreza), associada à riqueza e ao poder, como resultado dos títulos concedidos pela Coroa aos serviços que lhes foram prestados. Foi a partir daí que se deu início à política do favor do Estado para fins pessoais – o clientelismo de Estado – cuja prática foi se espraiando para o conjunto da sociedade. É verdade que grande parte dos caciques que pretendem continuar mandando neste país quer manter seus privilégios, daí a importância do “orçamento secreto” e o perigo a ele associado, que ameaça o próprio processo de democratização e de aperfeiçoamento civilizatório proclamado por Lula em seu discurso.

Uma política do favor que reúne reverência, submissão e intimidade. Sergio Buarque de Holanda, em seu livro “As raízes do Brasil” (1995), designou esse modo de ser e de agir como sendo o do “homem cordial”, oferecendo-nos as bases histórico-conceituais para pensar em que medida as políticas do favor e do clientelismo só foram possíveis graças a essa maneira de se dirigir ao outro, denotando proximidade como uma forma de misturar relações públicas e privadas, muito comum na história do país.

Richard Sennett, em seu livro “O declínio do Homem público – as tiranias da intimidade” (1988), sustenta que esta mistura entre público e privado existe já há algum tempo na sociedade contemporânea, em que as pessoas se veem movidas apenas por algo capaz de suscitar paixão, envolvendo de preferência questões de personalidade. E que isso tudo tem gerado uma enorme confusão entre vida pública e vida íntima. Como resultado, as pessoas tratam os assuntos públicos como se fossem questões de natureza privada, as quais, na verdade, só deveriam ser tratadas por meio de códigos impessoais.

Em princípio era a esta mistura/confusão que Cantanhêde se posicionou contrariamente. É preciso ver, entretanto, que a fala da jornalista foi um tanto ambígua, pois a despeito de defender a separação entre os domínios público e privado, ela recorreu às paixões que pudessem ser suscitadas a propósito da vida privada de Lula e Janja e as explorou largamente, o que acabou lhe rendendo, para o bem ou para o mal, grande visibilidade e muitos comentários nas redes sociais. De outro lado, é preciso ver que mesmo aqueles que não pertencem à esfera de poder dos caciques que dominam a política brasileira, assumem, muitas vezes, atitudes mandonistas, autoritárias, de natureza patriarcal e discriminatória. E os profissionais da grande mídia acabam recorrendo, muitas vezes, ao poder que têm de estar em evidência, com o microfone na mão, para proferir impropérios, como se fossem verdades absolutas, como o fez Cantanhêde, movida, não pelo espírito esclarecido de querer separar as dimensões pública e privada do exercício do poder, mas para encobrir inverdades subjetivas…na maioria das vezes, não admitidas, como o desejo de querer todo o holofote para si, sem suportar qualquer partilha do palco, ainda mais com uma mulher que não pertença à chamada “elite brasileira”.

Bibliografia:

ADORNO,T.W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Ed. UNESP, 2019. 

CARONE, I. A personalidade autoritária: estudos frankfurtianos sobre o fascismo. Revista Sociologia em Rede, v.2, n.2,2012.

HOLANDA, Sergio Buarque de. As raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,1995.

KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão. “Obras Completas de Melanie Klein: Volume III Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1957)”. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. SP: Cia das Letras, 2019. 

SENNETT, Richard. O declínio do Homem público – as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras,1988.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Imagem: foto de Ricardo Stuckert

Categoria: Política e sociedade 

Palavras-chave: racionalização, preconceito, personalidade autoritária, primeira-dama, inveja.

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Tags: inveja | personalidade autoritária | preconceito | primeira-dama | racionalização
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