Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Inquietações políticas sobre a formação
Ricardo Trinca (SBPSP)
O que significa uma formação psicanalítica que suprime a formação política de sua ideia de formação? Essa supressão da política não seria também uma forma de formação, uma forma negativa de formação? E a serviço de algum propósito ou de alguma teoria psicanalítica essa formação negativa, a-política, existiria? E por que a ideia de neutralidade ainda é usada como uma resposta para atender a alguns desses questionamentos e como modo de situar os analistas na dimensão política? E por fim, podemos questionar: o silêncio político nos institutos de formação não estaria criando uma ausência de pensamento crítico dos analistas em formação na sua relação com a sociedade (com a anuência dos analistas mais experientes) e abrindo espaço para a infiltração de personalidades autoritárias nos institutos?
Temos discutido amplamente aqui no OP sobre o racismo. Inúmeros colegas têm se dedicado a esse assunto que, sabemos, é para ontem. Por meio deles têm se tornado clara a necessidade de nos posicionarmos como antirracistas, porque quando não nos posicionamos afirmativamente nos colocamos inevitavelmente ao lado da repetição do mesmo, ou seja, da manutenção de uma sociedade e instituições que criam discriminação e racismos. Gostaria de usar esse modelo de pensamento para também pensar na democracia. A não-formação política nos institutos parece ser, da mesma forma, uma maneira de repetir o mesmo, ou seja, repetir a ausência de um pensar coletivo e ético. Não seria necessário nos afirmarmos como anti-intolerantes, como anti-fascistas e, portanto, afastados de uma ideia de neutralidade?
Percebemos que se não nos basearmos no paradoxo da tolerância de Popper, muito provavelmente a intolerância será a força instituinte que destruirá a tolerância e a democracia.
Os institutos de formação talvez tenham que considerar que não estão a salvo desse problema, pelo fato de que os candidatos à formação não são necessariamente democratas e podem não ter preocupações com o cuidado e com a vida. Por que não pensar no risco de uma presença intolerante na formação psicanalítica que, como na democracia, poder ter o propósito de minar a democracia? Presenciamos nos últimos anos diversas instituições serem corroídas por esse mesmo problema. Ser nesse momento preocupado com essas questões é procurar estar atento à realidade em que vivemos. Não vou dedicar longos parágrafos a isso, mas gostaria de lembrar que estamos redescobrindo os efeitos de uma lei da anistia que não pôde cuidar para que uma história tivesse a sua real dimensão e importância. As instituições democráticas, entre elas as psicanalíticas, devem garantir a continuidade dos direitos fundamentais do cidadão e a luta constante e contínua pela ampliação desses direitos, frequentemente tão atacados.
A ética psicanalítica, associada ao cuidado, apenas pode ser realizada se o entorno social garante a liberdade de seu exercício e do pensamento. Mas é preciso nomear: quem apoia atos ou pratica ações intolerantes almeja um poder autoritário que discrimina e cuja violência é histórica no Brasil. E isso não é condizente com a ética psicanalítica.
As instituições democráticas têm um paradoxo: devem ser intolerantes com quem não tolera a tolerância, e ser intolerantes com quem não tolera a igualdade. Para tanto deve aceitar membros que tenham indiscutivelmente um senso de tolerância e ética. Por isso, vale reforçar, a democracia tem limites claros, isso significa que nem tudo cabe, nem na democracia e nem nos institutos de formação.
Qual a capacidade que os institutos de formação têm hoje de identificar e eventualmente restringir o ingresso de postulantes com personalidade autoritárias ou que poderiam ser potencialmente danosos aos próprios institutos e posteriormente às sociedades psicanalíticas? A restrição é o melhor meio de demarcar a nossa ética? Escrevo esse breve texto problematizando esse assunto tão atual, embora antigo, e pensando que essa solução repressiva não deve ser a única e talvez não seja a mais elegante; e essa questão deve ser inicialmente posta para que posteriormente seja solucionada. No entanto, uma resposta sobre a análise pessoal como o instrumento que garante mudanças em personalidades autoritárias não é uma resposta satisfatória, pois aspectos perversos associados à política e à desconsideração sobre a vida – pois é disso que se trata fundamentalmente – podem se conservar intratáveis. Não seria mais prudente ter a política em amplo sentido (não política partidária) como um critério de escolha dos candidatos e como parte integrante da formação desses mesmos candidatos?
Os textos produzidos nesse Observatório Psicanalítico e o podcast Mirante são trabalhos para os psicanalistas com sensibilidade social ou devem ser considerados textos de formação ética? Os institutos, por sua vez, não poderiam usar esses instrumentos disponíveis como maneira de introduzir o tema da política e da ética em seus programas de formação?
Precisamos, desse ponto de vista, pensar mais e melhor no que é afinal a política e sua ética, para bem formar os psicanalistas que estarão desenvolvendo as instituições num futuro próximo.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Friedensreich Hundertwasser
(Austrian,15.12.1928 – 19.02.2000). City Seen from Beyond the Sun, 1955
Categoria: Instituições psicanalíticas
Palavras-chave: Psicanálise, Formação, Ética, Política.
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