Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Racismo na Terra dos Lanceiros Negros
Ignácio A. Paim Filho (SBPdePA)
Cento e trinta e quatro anos da abolição quer dizer 134 de luta dos negros que, no Brasil, dia a dia convivem com o preconceito e a discriminação racial. Cento e trinta e quatro anos de abolição quer dizer 134 anos de luta contra o racismo desse país que é nosso e que ajudamos a construir: não só com trabalho, mas sobretudo com a cultura transmitida por nossos ancestrais e transformada e enriquecida por cada um de nós (Neuza S. Santos, Rio de Janeiro, 13/05/ 2008).
Porto Alegre, 14 de outubro de 2022. O clube Grêmio Náutico União está em festa. Festa comemorada em grande estilo, público seleto, mulheres e homens brancos, trajes elegantes, jantar sofisticado, servido em sua maioria por afrodescendentes (aqueles que estão proibidos de olhar e falar com seu irmão de cor), acompanhado de um belo show, que tem como estrela Seu Jorge, uma das pérolas negras entre tantos corpos brancos. O universo da branquitude, com seus eternos privilégios em cena, reencenando nosso legado escravocrata com sua hierarquização de raça e classe. O existir violentamente (Brum, 2021) está presente em cada detalhe deste cenário brancocêntrico, com seus horrores silenciados. Contexto que, por si só, faz com que o lema de nossa bandeira fique sob judice – Liberdade, Igualdade e Humanidade. Para quem?
O espetáculo termina, muitos aplausos. Entretanto, no lugar do “Bis” instala-se a barbárie, tendo como protagonistas os que se julgam representantes maiores do Ser civilizado, os herdeiros do colonizador europeu. Insultos de cunho racista vociferam e a política do ódio se presentifica. O interrogante, com timbre da intimidação, “Quem é você?” (Mbembe, 2018) está implícito. Por que? Talvez devido ao fato que este cidadão, que ama a sua raça, ousou desafiar o lugar que estava destinado, desde a diáspora forçada da África, para si e para o seu povo: o do subalterno. Não esqueçamos a máxima que diz: “racismo não existe no Brasil, pois o negro sabe o seu lugar”. Seu Jorge estranha, diz não reconhecer nessas manifestações a cidade que aprendeu a amar. Entretanto, nós negros e negras que conhecemos bem a cultura racista de nosso Estado, nos reconhecemos nessa moldura.
Segundo relatos das redes sociais, as manifestações individuais e institucionais do racismo estrutural se devem ao comentário feito por Seu Jorge contra a redução da maioridade penal e a morte de jovens negros favelados: reedição, na vida cotidiana, do massacre dos Lanceiros Negros? O assassinato do José Alberto Freitas, em Porto Alegre em 19/11/2020, ainda ressoa em nossos ouvidos, toca nossa alma e faz nossos corpos negros estremecerem, num processo de terror e dor, num luto inominável e interminável – o traumático oriundo da realidade cruenta do racismo, segue fazendo história nos pampas exigindo de nossa gente um estado de vigilância ininterrupta – necessitamos manter todos os nossos sentidos bem aguçados. Nossos corpos perdem a função de escudo protetor (Freud, 1920) e transformam-se em alvo da destrutividade e sequestro das nossas reservas libidinais. Enredo que nos convida para refletir sobre as singularidades do racismo à gaúcha – território de lembranças encobridoras, exemplificado na expressão: “não foi bem assim”.
Lanceiros Negros, para aqueles que ainda não sabem, foram assassinados quando do acordo de paz – de quem e para quem? – entre o império, representado por Duque de Caxias, e os líderes da revolução Farroupilha (1844). Entre eles David Canabarro, comprometido com fazer do 20 de setembro o precursor da liberdade para o povo branco e da perpetuação da escravidão, com seu hediondo racismo para com o povo negro. Acordo, ou melhor, pacto racista que ocasionou a morte impiedosa dos combatentes negros, descumprindo a promessa de liberdade ao fim da revolução – é importante registrar que estes foram abatidos, desarmados por ordem de seus comandantes. Marcas inaugurais do que podemos chamar o Mississipi brasileiro – a necropolítica se desenhando. Chacina, mancha branca na nossa história, contraponto ao refrão: Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra. Quais façanhas? A do povo branco com suas infinitas histórias de guerras de desumanização, antidemocráticas e desigualitárias?
Mancha que insiste e persiste em retornar nos mais variados cenários da cultura gaúcha e brasileira – tais como clubes recreativos, estádios de futebol, shoppings, universidades, bancos, lojas, vias públicas, sociedades de psicanálise, como também nos poderes executivo, legislativo e judiciário…, que revelam o racismo que permanece proeminente na terra de José Candido, o “Almirante Negro”.
O racismo estrutural em sua dialética com a branquitude, presente em todos os recônditos da República Democrática Brasileira, segue exercendo sua força deletéria na efetivação e manutenção das suas ideologias de poder. Ideologias que nos convocam para o confronto, no sentido da sua não manutenção. Tal intento requer tomadas de posições que signifiquem um trabalho coletivo em benefício de ações reparatórias pelos danos irreparáveis que o racismo praticou, e segue praticando, na vida da população negra. Sendo assim, temos a demanda imperiosa de nos engajarmos na luta antirracista, legitimando as façanhas do povo negro, enquanto luta e resistência em prol de uma verdadeira liberdade, humanidade e igualdade. Essa sim, como modelo para toda a terra e para toda a gente. Portanto, mostremos valor, constância nesta ímpia e injusta guerra – racialiazação do povo negro – orquestrada pela branquitude a serviço da manutenção dos seus ideais narcísicos.
Em defesa de um autêntico Estado Democrático, identificado com “O legado dos Lanceiros Negros” – estes virtuosos, que sempre se recusaram a ser escravizados – onde o racismo, bem como toda a forma de discriminação, calcada em juizo de valor, torna-se incompatível com uma ordem social pautada por um pensar e fazer ético. Tempo de revitalizar a empatia social (Freud, 1923) como meio de identificação e defesa contra a hostilidade/rivalidade para com o semelhante.
Segue fragmentos do hino riograndense, com o objetivo de ressignificá-lo à luz da aurora precursora de um novo tempo – racismo nunca mais – não basta, pra ser livre ser forte, aguerrido e bravo, é preciso responsabilizar o predador de corpos e de almas.
Como a aurora precursora
Do foral da divindade
Foi o 20 de setembro
O precursor da liberdade
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo para toda a terra
Mas não basta, pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem extraída de HistóriaZine/Ceert
Categoria: Vidas Negras Importam
Palavras-chave: Lanceiros negros, Racismo, Branquitude, Democracia, Pacto racista.
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