Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Jorge e o pacto – Breve reflexão sobre o Brasil de negros e brancos
Fábio Brodacz (SPPA)
“O problema do negro não é para o negro resolver” (Conceição Evaristo)
Há um pacto silente, mas bem conhecido, no Brasil pós-escravagista: a sociedade branca e os negros podem conviver em harmonia desde que se conservem na disposição social que ocupavam no Brasil colônia. O que mantém o pacto vigorando tem motivações bem diferentes: a conveniência da elite branca casa bem com a necessidade do negro.
O negro é bem vindo na sociedade branca enquanto serviçal. Não precisa, nem deve, pensar. Basta cumprir o seu papel e ficar no seu lugar e assim vivemos todos em paz.
A sociedade branca, comodamente servida pelo negro, não enxerga o racismo. Considera, no máximo, uma exceção de estádios de futebol, onde todos estão apaixonados e exaltados. No estádio, o branco que ofende o faz por amor a seu time e o negro, desavisado, esta lá como estraga-prazeres. O negro xingado é o negro dos outros. E, afinal de contas, é preciso considerar que a paixão pode confundir adversário com inimigo.
Algo mais enigmático, mas também mais revelador, ocorre quando o negro vilipendiado é o artista no palco. Uma vez que o público que lá está não o recebe a priori como adversário, o pacto estaria, a princípio, garantido: o negro pode ser agraciado, aplaudido, porque está cumprindo bem sua função de entreter. Ele é como o negro do meu time, que me é útil e então pode ser poupado. Enquanto canta músicas com afã, ele reafirma estar entre nós pelo mesmo propósito a que seus antepassados foram trazidos da África. A remuneração que recebe deve, inclusive, garantir que ele fique feliz, afinal ele não é mais um escravo. Enquanto isso, a recepção a um artista negro de boa voz serve como salvaguarda para o “aqui não somos racistas”.
O resguardo desse pacto explica bem o clima amistoso, o artista que tem o público cem por cento na mão, os aplausos e tudo o mais. Não fosse a crença de que o pacto seguiria em vigor até o final do espetáculo, seria difícil explicar como aqueles que agora ofendem o negro pudessem o estar saudando meia hora antes.
Meia hora antes, Seu Jorge era o negro a serviço da recreação. Agora ele quer emitir opinião? Há pouco ele oferecia simpaticamente seu samba de favela e de repente resolve falar de proteção a jovens favelados? Ele era o Seu Jorge, e agora resolve se manifestar? Ele quer ser Jorge Mário da Silva? Ele acha que pode ser um sujeito? Que tem direito a uma mente pensante? Ele quer romper o contrato de um século e meio bem no meio da minha festa? Esse negro vagabundo? Deixe ele à vontade e daqui a pouco vai começar a contar antigas histórias miseráveis de Belford Roxo.
Penso em uma triste analogia quando visualizo o cantor que ousa abandonar por um instante o pacto para tentar dialogar com o branco. O diálogo que ele propõe é duro: ele pede que se olhe para o drama do negro. A analogia que faço é dura também: é o escravo que tenta se aproximar da casa grande quando devia voltar do engenho direto pra senzala. Ele vai receber, sem nenhuma dúvida, sua dose de açoite.
Mas se o negro quiser evitar o chicote no lombo e participar da brincadeira, o anfitrião já oferece a fórmula pronta: vista roupa de aristocrata, não incomode o público na hora da diversão, e principalmente, não tenha a ousadia de esfregar na cara do dono da festa que pretende votar nas próximas eleições. E ainda no candidato errado.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Vidas Negras Importam
Palavras-chave: Arte, Racismo, Sociedade pós-escravagista
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