Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Espaço psíquico-político ou uma interpretação psicológica das eleições
Celso Gutfreind (SBPdePA)
“Senhor cidadão
Senhor cidadão
Eu e você
Eu e você
Temos coisas até parecidas
Por exemplo, nossos dentes
Senhor cidadão
Da mesma cor, do mesmo barro
Senhor cidadão
Enquanto os meus guardam sorrisos
Senhor cidadão
Os teus não sabem senão morder
Que vida amarga”
(Tom Zé)
“Minha compreensão também pequenininha do conjunto das coisas todas” (Rhaissa Bittar)
“Enquanto discordamos
do mal que está
por aí,
acordamos
com uma esperança
que ainda está por aqui.”
(Por aí/por aqui)
Se pensarmos na analogia psiquiatria-psicanálise, cada qual com suas serventias e indicações, a primeira como um método terapêutico centrado em debelar sintomas sem entrar no mérito de suas questões, e a segunda, de enfrentá-los de outra forma, atribuindo sentidos para eles, ou seja, entrando profundamente no mérito, sem necessariamente debelá-los (sobretudo em tempo menor), os resultados do primeiro turno das recentes eleições no Brasil, mostram que, a partir de agora, será necessário mais psicanálise, com todos os seus benefícios e limites, atrelados a subjetividades e interações. Claro que precisaremos de sociologia, filosofia, humanidades, em geral, para o pensamento, incluindo o que ainda não sabemos: a minha analogia é só um jeito de expor uma hipótese interpretativa.
Muitos de nós, pelo menos em torno de 47 por cento, acreditamos que poderíamos, juntos, debelar o bolsonarismo, ou que já chamamos de Bozo, Diabo, nomes representativos do radicalismo de uma extrema-direita negacionista, incluindo as negações da ciência e da ditadura, bem como o extermínio das humanidades citadas acima, mais a violência, entre outras, da misoginia, homofobia, transfobia.
Qualquer nome que se desse, a coisa não cheirava bem, como um sintoma grave de uma coisa muito maior. Subjetiva, ainda que expressa em terrível concretude, e que, portanto, não se produzira de forma isolada, ou seja, no contexto de uma história, também negada.
Os resultados da eleição, impressionantes e assustadores, em seus diversos níveis e alçadas, entre municipal, estadual, federal, ou mesmo nas esferas legislativa e executiva mostram que o bolsonarismo solidificou-se, enraizou-se, não está de passagem. Infelizmente. Tragicamente.
Há ainda chances de um governo federal não bolsonarista, mas mesmo esse terá de se ver com uma Câmara e um Senado já majoritários de pelo menos aliados daquela direita extremada. Sabemos que o fenômeno se estende a outros países, mundo afora, incluindo Estados Unidos, Suécia, Áustria, Hungria, ou seja, tem algo de podre no mundo, o que não seria nenhuma novidade.
Mas tal direita já não pôde e não pode, no momento, ser debelada pelo voto. Pela fala. Pela arte. Pelo depoimento, pelo menos em curto prazo, como viemos tentando em nossos diversos espaços e formas de expressão. Como há poucas décadas, um projeto de civilização fracassa novamente, e “a coisa” já não pode ser sedada. Tampouco pode ser operada como quem retirasse um cancro ou qualquer outra doença com o bisturi.
Ou está tudo melancolicamente perdido ou nos resta enfrentar no miudinho do que sequer sabemos, como quem enfrenta um sintoma grave – daí a psicanálise -, tornando-se necessário compreendê-lo, adentrando nas entranhas do contexto do seu aparecimento e da sua estrutura, conhecendo as suas múltiplas causas, que podem incluir até mesmo a falha da esquerda e do centro ou, em especial, séculos de falta de empatia, vinda de todos os lados, diante da desigualdade social e econômica, bem como da injustiça social. Seria, então, preciso conhecer causas irremediavelmente doloridas, narcísicas, tanáticas, no rastro de uma consciência difícil de adquirir, como em uma psicanálise que não seda, não cura, pelo contrário: tão somente (tão somente?) aumenta a possibilidade de percepção para lidar melhor com o que já estava doente e poderá continuar, embora, a partir da consciência e de seus nomes, tende a encontrar alternativas estruturais para o enfrentamento (não a extinção).
Ao que tudo indica, já não podemos não conviver com o sintoma que nos acomete como nação (e mundo) e que nos implica por toda parte, incluindo nossos antepassados recentes e mesmo longínquos, nossos conterrâneos, nossos amigos, nossos familiares. Não há medicação possível ou específica e, muito menos, definitiva. Não se pode retirá-lo simplesmente, com um ou mais cliques de uma urna, como imaginamos, um dia.
É preciso resistência, mesmo que, em psicanálise, o seu sentido seja outro, talvez até contrário a esse. Tudo dependeria agora de uma convivência de longo prazo com a coisa, a coisa ruim, o que inclui reflexão, tomada de consciência, elaboração, construção, reparação, luta diária, dia a dia, sessão a sessão, ou seja, tempo; um tempo repleto do que ainda não sabemos e precisamos saber como mentalizações e ações necessárias, embora a gente desconfie de que devam passar pela educação (criação), mirando a produção de uma empatia que combata privilégios e abra oportunidades que possam, ao longo do (largo) tempo, diminuir os teores de maldade, no caso do mundo externo, abrindo espaços psíquicos e políticos (não necessariamente os mesmos) para que possam entrar mais em cena a tolerância e a hospitalidade.
Utopia? Talvez, mas mirá-la inteira, para obtê-la em parte, pode estar no centro de nossa ética e responsabilidade. Não seria rápido e, talvez, não fosse muito. Mas poderia ser decisivo. Como na psicanálise. Como na realidade.
Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras-chave: Psicanálise, Política, Psicanálise aplicada, Utopia, Eleições
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