Observatório Psicanalítico – OP – 332/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Vidas na Craco importam?

Oswaldo Ferreira Leite Netto, Ludmila Frateschi e Márcio Roque (*) (SBPSP) 

 

Tomemos como ponto de partida algumas ideias, que nos parecem ser razoavelmente consensuais entre as muitas psicanálises:

1) de que a saúde psíquica é a possibilidade do sujeito de tomar conta de sua própria vida e responsabilizar-se por ela, sendo assim capaz de fazer investimentos libidinais, sustentá-los e de variar os objetos em que investe para que possa viver em sociedade e, ao mesmo tempo, conseguir equações minimamente satisfatórias;

2) de que o modo como um sujeito vive sua vida é, no geral, o modo como lhe é possível, o jeito que ele deu para sobreviver e aguentar viver com os recursos que tinha disponíveis;

3) de que, para que o sujeito se torne autônomo e possa ampliar a sua gama de recursos psíquicos, é necessário que algumas condições estejam presentes, essencialmente um ambiente minimamente estável e previsível e que ele também receba algum investimento libidinal sustentado por um tempo.

Olhemos agora para a situação atual da chamada Cracolândia, localizada na região da Luz, em São Paulo. Em primeiro lugar, o nome Cracolândia é dado à região em que se podem observar usuários de drogas e pessoas em situação de rua misturados, fazendo uso de drogas em espaços públicos e, muitas vezes, também comprando drogas em espaços públicos. Há anos concentrada na região da Luz, em São Paulo, recentemente a Cracolândia estava organizada em torno da Praça Princesa Isabel e sempre foi considerada um problema para a cidade: ela evidencia uma disputa pelo espaço do centro da cidade, na qual estão envolvidos todos os seus atores – moradores antigos, comerciantes, agentes culturais, serviços, transeuntes e especuladores imobiliários que desejam realizar empreendimentos na região. Nessa disputa, o poder público é chamado a se posicionar para definir a quem esta parte da cidade tão privilegiada em termos de localização pertence ou como ela deve ser compartilhada. Ao mesmo tempo, por concentrar populações socialmente vulneráveis (pobres e pretos, em sua esmagadora maioria) e organizada em torno do uso de drogas (não apenas crack, mas também álcool, cocaína e outras), ela exige intervenções que não são apenas de regulamentação do espaço, mas que possam dar conta de garantir àquelas pessoas os direitos fundamentais de acesso à moradia, alimentação, ir e vir, e à saúde.

Há cerca de dois meses, a Prefeitura, como vem sendo amplamente divulgado nos noticiários, adotou uma estratégia de “dispersão” da Cracolândia, deslocando-a da Praça Princesa Isabel e impedindo concentrações de pessoas em quaisquer outros pontos da região. Quando perguntada sobre qual a alternativa para a população dispersada, ela responde com a possibilidade de internação em Comunidades Terapêuticas, como solução única.

As soluções muito simples, aplicadas a problemas complexos, tendem a esconder perversidade e autoritarismo. Muitas pessoas, de muitas especialidades, vêm apontando quão desastrosa tem sido a ação. Aqui, nos cabe falar como psicanalistas que atuam na região. Para nós, de acordo com o que apresentamos no início deste texto, um habitante da Cracolândia, usuário ou não de drogas, está ali porque aquilo é o que lhe é possível. Considerando a precariedade de viver na rua e o efeito devastador sobre o corpo da pouca comida e do uso de drogas, é possível pensar que aglomerar-se e juntar-se é uma estratégia de sobrevivência – física e /ou psíquica – de quem rompeu com todos os outros vínculos por alguma razão. Se os interesses daquelas pessoas forem de alguma forma considerados, será preciso assumir que estar em conjunto foi o que de mais autônomo lhes foi possível até agora. A observação do “Fluxo” (a aglomeração em si), de sua organização, dos laços formados entre seus habitantes, comprova o movimento de vida que há naquela junção de pessoas, que vão formando uma cultura própria – à margem.

Quando recebemos em nossos consultórios um adicto (e reparem que utilizamos “adicto” aqui e “craqueiro” ou “nóia” lá), comemoramos como um sucesso terapêutico que ele se vincule ao que quer que seja – ao analista, a um amigo, a uma atividade. Imaginemos que no meio desse processo o paciente fosse impedido por outrem de sustentar essa vinculação – consideraríamos desastroso.

A Guarda Civil Metropolitana (GCM), ao dispersar a Cracolândia, rompe a vinculação dos seus habitantes entre si, com os bens que conseguiram juntar, com as equipes de saúde, sociais e jurídicas que as atendiam, com o território. Pior, vem fazendo isso com uso da força, usando de água, sprays de pimenta, gás e balas de borracha (vimos muitos corpos marcados). Impede as pessoas de sentar, de dormir, de comer, de conversar. O efeito, possível de ser observado por qualquer um que se disponha, é de um aumento da tensão e da confusão mental de pessoas muitas vezes já vulneráveis, que se tornam cada vez mais potencialmente violentas porque cada vez mais desorganizadas.

A alternativa da internação, ainda que fosse em equipamentos de excelência comprovada (o que não parece ser a realidade, como também vem sendo noticiado), como bem sabemos nós que atendemos adictos em nossos consultórios, não funciona para todos e nem da mesma maneira. Como política pública para uma massa de pessoas, a história mostra que as internações costumam servir como estratégia higienista, que “tira da frente” as pessoas indesejáveis e que as tornam pacientes crônicos de tratamentos infinitos, em que sua independência e autonomia torna-se algo cada vez mais distante.

Padre Julio Lancelotti vem trabalhando a ideia de “aporofobia” (termo cunhado pela filósofa Adela Cortina e que significa aversão, ódio ou rejeição aos pobres) e fazendo campanha para que a população se sensibilize e se solidarize de modo mais humanitário com as populações de rua no geral. Gente é gente, gente precisa de gente. Quando passa a existir gente que não é tratada como gente e o resto do mundo se omite, é fascismo e é genocídio.

*Este grupo de analistas coordena uma parceria recém estabelecida do curso “A escuta da subjetividade do paciente psiquiátrico”, oferecido pelo Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC/FMUSP), com o projeto Teto, Trampo e Tratamento, que atende usuários de drogas da região da Luz.

*Para quem não viu os noticiários sobre o tema, alguns links complementares:

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/07/apos-dispersao-da-cracolandia-usuarios-de-droga-ocupam-16-pontos-no-centro-de-sp.shtml

https://noticias.r7.com/sao-paulo/cracolandia-muda-de-endereco-por-duas-horas-durante-acao-de-limpeza-em-sao-paulo-29062022

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/07/07/prefeito-de-sp-atribui-aumento-da-violencia-na-cracolandia-a-suposta-falta-de-drogas-especialistas-em-seguranca-criticam-estrategias.ghtml

Foto: Luca Meola (@lucameola1977)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

 

Categoria: Política e Sociedade 

Palavras-chave: Cracolândia, Fascismo, Vínculo, Saúde psíquica.

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Tags: Cracolândia | Fascismo | Saúde psíquica | Vínculo
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