Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo
Entre Sereias e Guerreiras: Representações sobre o Feminino
Daniela Yglesias C Prieto (SPBsb)
A pequena sereia Ariel era uma princesa com uma linda voz que vivia em seu reino no fundo mar. Ela apaixona-se por um príncipe e passa a querer ter pernas para viver no mundo dele. Combina com uma feiticeira que lhe promete que lhe daria o que pedia, mas que para tal ela perderia sua voz. Ariel consegue suas pernas, após sua transformação, porém o príncipe se desencanta por ela e investe na relação com uma outra que lhe pareceu mais interessante. Ariel fica desnorteada, sob forte tensão psíquica, porque agora não tem nem o príncipe nem a si. Em seu desespero, pensa em tirar a própria vida com um punhal, mas acaba por se lançar no mar e seu corpo se dissipa em espuma. O dinamarquês Hans Christian Andersen, autor desse conto, nos ensina que não se conquista uma vida feliz ao se abrir mão de quem se é para se moldar ao que se supõe ser o desejo do outro.
Bolas (2000), em seu livro Hysteria, defende que esse é o conflito central desse modo de adoecimento. Ariel tenta se adaptar ao que supõe ser o desejo do outro e acaba ficando em uma posição passiva e impotente. Andersen traz nesse conto aquilo que Freud (1908) defende em O escritor e a fantasia sobre os escritores criativos abordarem antes dos psicanalistas os conflitos psíquicos mais profundos. Importante destacar que Ariel sai de uma posição ativa para uma posição passiva, como nos ensina Freud (1930) em Mal-estar na civilização. Ela perde sua potência na sua relação com a realidade ao abrir mão da sua voz e fica confusa e desorientada em relação ao mundo.
A voz aparece nesse conto como indicador de potência, da capacidade de comunicar os próprios desejos, sentimentos e desejos. Abrir mão dela é perder um recurso fundamental do Eu no intercâmbio com o mundo. Indica também a potência da palavra dita, enunciada, como nos ensina a Psicanálise desde os estudos iniciais sobre histeria.
O mundo aquático e o mundo terrestre têm diferentes níveis de pressão atmosférica, o que exige também um ajuste, como fazem os mergulhadores de profundidade que regulam a pressão soltando bolhas de ar. Na experiência dissociativa, bolhas de ar são produzidas como forma de regular a tensão psíquica. Nesses casos, o bolo histérico pode surgir como indicador do conflito entre falar ou não os próprios desejos, o que pode levar à perda da fala. A vivência de uma experiência que ultrapassa a barreira de estímulos do sujeito pode provocar confusão mental, dificuldade de articulação da fala e experiências de desorientação típicas dos quadros dissociativos, entre eles o burnout. Quanto mais precoce é o trauma, mais ele é desorganizador para o Eu.
É importante pensar que muitas mulheres atualmente vêm desenvolvendo quadros de burnout por acumularem as demandas do mundo do trabalho e do mundo privado sem terem os dispositivos de cuidados substitutivos adequados nos seus territórios, como: creches e escolas para seus filhos e lugares de convivência para os idosos. O trabalho no mundo doméstico continua sendo exercido prioritariamente pelas mulheres que se queixam da falta de equidade.
No que se refere ao destino das mulheres, destacam-se referências mais antigas como Helena em Ilíada e a Penélope em Odisseia, ambas conectadas com seus desejos e figuras centrais dos clássicos de Homero. As sereias também aparecem em Odisseia, na qual Ulisses amarra-se ao mastro do navio para ouvir o canto delas sem enlouquecer e se jogar no mar, enquanto seus marinheiros seguem remando com os ouvidos tampados.
No que se refere à cultura brasileira, Chico Buarque de Holanda aborda os conflitos entre destinos possíveis nas suas músicas: “Mulheres de Atenas”, “Terezinha de Jesus” e “Geni”, entre outras. É interessante pensar que uma espécie de “geni” surge no filme Bacurau em que uma moça jovem, bonita e pobre é sexualmente explorada por vários homens da cidade, sendo tratada como um objeto e submetida a condições degradantes. O assédio sexual de mulheres no Brasil é algo amplamente difundido na cultura, em que elas são colocadas e mantidas em posições de subalternidade para que possam ser exploradas e tratadas como objetos e descartadas como lixo após o uso.
Mais recentemente, a Disney lançou o filme Mulan que tem como protagonista uma guerreira que se junta ao exército para ajudar a vencer os inimigos externos. Essa é uma tendência atual: muitas mulheres centram suas vidas na esfera pública e não querem ser mães. Talvez frente aos dispositivos de cuidados substitutivos precários em seus territórios, elas não se sintam atraídas pela maternidade. Contudo, a interrupção de uma gravidez indesejada não é permitida em muitos países, o que leva algumas a uma maternidade compulsória.
Em relação aos conflitos da maternidade, esses aparecem representados nos filmes mais recentes como Tully, “A filha perdida” e Mother, como também no mais antigo “Clube da felicidade e da sorte”. A sobrecarga de demandas externas se juntam às demandas internas e aparecem os sintomas de ansiedade e dissociação, como perda de memória recente, desorientação e despersonalização que são características da sobrecarga de demandas sobre o Eu, como na condição do Burnout. A dificuldade radical de investir amorosamente um filho aparece nos filmes “O perfume” e “Precisamos falar sobre Kevin” com resultados nefastos. Um filho amorosamente investido sempre parece um “pequeno príncipe” ou uma “pequena princesa”. O risco está sempre na desmesura, para um lado ou para o outro, como já alertavam os gregos.
Mais recentemente a distopia apresentada na série The Handmaid’s Taile (Contos de Aia) mostra uma contrarrevolução feminista em que as mulheres voltam a ser tratadas como objetos, em que seus corpos são transformados apenas em úteros para reprodução, em que não há lugar para o prazer sexual. O status das mulheres nessa série é apresentado pelo uso de diferentes cores. As Aias usam vermelho e cumprem a função de gerar bebês para suas patroas que usam vestes verdes. Há também as mulheres que usam roupas beges e cumprem a função de cuidar das tarefas domésticas. Contudo, no final das contas, nenhuma dessas mulheres pode escolher livremente seus destinos. Outro aspecto interessante é que os corpos são inteiramente cobertos, como uma espécie de burca em que só resta uma pequena margem para as trocas e contatos sociais. Todas as três classes de mulheres estão submetidas aos homens e não são livres para seguir seus desejos, apesar das seus diferentes papéis sociais.
Ainda no que se refere à violência de gênero, a francesa Marie-France Hirigoyen (2006) no seu livro “A violência no casal: da coação psicológica à agressão física”, ressalta a tentativa de controle do corpo, da circulação e dos contatos sociais das mulheres submetidas a relações violentas. Ela aponta que tudo começa com a violência psicológica e que a agressão física, em geral, ocorre quando a primeira não foi suficiente para dominar a mulher. As ideias dessa autora são muito bem ilustradas no filme “Encaixotando Helena”.
Marceline Gabel é organizadora do livro “Crianças vítimas de abuso sexual” e revela como a ausência de dispositivos de cuidados substitutivos nos territórios deixam as crianças em situação de vulnerabilidade social e passíveis de serem submetidas à violência sexual. Importante pontuar que no Brasil, qualquer pessoa que saiba de uma situação de violência contra crianças e adolescentes (sexual ou outras) tem o dever de notificar os órgãos competentes, sob pena de crime de omissão (ECA, 1990).
A pesquisadora alemã Christina Berndt, autora do livro “Resiliência: o segredo da força psíquica” aponta o que a psicanálise já defendia desde tempos remotos que a capacidade de resistir a situações de alta tensão depende do autoconhecimento e da qualidade das primeiras relações na infância. Uma pessoa resiliente se recupera melhor de experiências negativas porque pode aprender com elas. Destaca inclusive o princípio da epigenética defendido por Erik Eriksson em tempos remotos.
Valeska Zanello (2018), pesquisadora brasileira, em seu trabalho “Saúde mental, gênero e dispositivos”, destaca a fragilidade da posição das mulheres na cultura brasileira em que a autoimagem e autoestima está associada à validação que vem de possuir ou não um parceiro amoroso. Em consonância com isso, penso que ficam em uma situação de vulnerabilidade em que muitas aceitam relações assimétricas e, em alguns casos, marcadas pela violência, em função dessa autoimagem dependente da validação de um homem.
No que se refere às “sereias”, “helenas” e “penélopes” na realidade brasileira, estas são muitas vezes tratadas como se estivessem em prateleiras, disponíveis para serem agarradas, como se fossem objetos. Não são reconhecidas como sujeitos de direitos. São muitas vezes assediadas, têm o sossego perturbado como se estivessem disponíveis para serem desfrutadas. São perseguidas na ruas, assediadas no trabalho, agarradas em festas, como se estivessem disponíveis para serem caçadas, laçadas. Submerso a esse tipo de tratamento está uma percepção de que as mulheres são cidadãs de segunda categoria, uma espécie de subcidadania e assim podem ter seus corpos e sua reputação vilipendiados. Muitas vezes ficam invisibilizadas no trabalho, ou eternamente em funções subalternizadas, e não progridem em suas carreiras (efeito teto de vidro). Submerso a tudo isso está a cultura do estupro que faz com que as mulheres tenham que tomar cautelas redobradas no Brasil porque pode ser atribuído a elas a responsabilidade pelo crime do qual são vítimas (“estava dando mole”).
Concluindo, a falta de dispositivos de cuidados em seus territórios deixam as mulheres brasileiras e seus filhos em uma condição de vulnerabilidade, em que seus corpos e reputações podem ser violados, vilipendiados. Permanecem como cidadãs de segunda categoria, uma verdadeira subcidadania, como aponta Jessé de Souza (2018) em seu livro a “Classe média no espelho: Sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade”. Esse autor destaca a raiz escravocrata da sociedade brasileira em que alguns são considerados cidadãos e outros são tratados como animais que podem ser domesticados e tratados em condições sub-humanas.
A necessidade de luta das mulheres por direitos sociais, políticos e reprodutivos é constante, como nos adverte o filme “Sufragettes”. O investimento público em dispositivos de cuidados substitutivos nos seus territórios na área da saúde, educação e assistência social é imperativo para que as mulheres possam investir no trabalho em condições equânimes. Nesse sentido, é urgente a necessidade de delineamento de políticas públicas de equidade e paridade para que possam exercer a plena cidadania e o Brasil possa avançar em termos de igualdade de gênero. Bom, seguimos na luta!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Política e sociedade
Palavras chaves: Histeria, Experiência dissociativa, Burnout, Mulheres, Cidadania
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