Observatório Psicanalítico – OP – 320/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo 

Bilionários em tempos de crise 

Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)

Há pouco tempo recebemos a visita do homem mais rico do mundo, Elon Musk, que veio para se reunir com nosso inconfundível inquilino do Planalto, tendo em vista uma eventual parceria com o governo brasileiro. Com certeza, terá sido uma conversa construtiva, em que devem ter sido discutidas medidas apropriadas para o cuidado com a Amazônia. Perdoem-me o leve toque de ironia, mas o fato é que Musk pretende prover sistemas de internet por satélite e monitoramento de desmatamentos para a região amazônica. Imagina-se que isto represente progresso e bem-estar para a população local, especialmente os povos originários, carentes de apoio e amparo. Os mais crédulos acreditarão piamente nas nobres intenções desta reunião. 

Sou um “dinossauro” do século passado, de funcionamento mais para analógico do que para digital. Pouco entendo das matérias de inteligência artificial, carros elétricos de alto desempenho, viagens espaciais, túneis subterrâneos, ramos de atividade do dono da Tesla e da SpaceX, entre outros negócios. Apostando na possibilidade de viagens interplanetárias e prevendo duras condições de sobrevivência na Terra, Musk sonha em construir uma base na Lua e colonizar Marte, onde – já chegou a dizer – deseja terminar seus dias. 

Não tenho subsídios para discutir matérias relativas a esses assuntos. Porém, o que sei é que é difícil confiar em quem se dispõe a trabalhar em conjunto com alguém que, diariamente, dá provas de truculência, despreparo e de uma ética para lá de duvidosa. Recentemente, o presidente conseguiu a proeza única de saudar os policiais “guerreiros” que perpetraram a chacina de Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro. Em termos internacionais, a imagem de Bolsonaro é péssima, em função de sua conduta negligente e negacionista na pandemia, do extremo descaso quanto à questão ambiental e da constante retórica de ódio a expressar suas inclinações antidemocráticas. Ora, Musk pode ser tudo, menos ingênuo. Sem dúvida, ele é devidamente assessorado para saber com quem está lidando. Portanto, talvez ele seja um exemplo de bilionário que aqui quer aportar para lucrar, mas sem muitas preocupações com a imensa desigualdade social, que caracteriza o Brasil. Pegou seu jato particular e foi-se embora logo após o encontro que atendia aos seus interesses, sem visitar mais nada neste país em que grassam violência, inflação, desemprego, miséria e fome. Aqui em São Paulo, quando caminho pelas redondezas do meu consultório e da minha casa, constato o quanto aumentou o contingente de pessoas em situação de rua, pedintes e malabaristas nas esquinas dos semáforos. 

Convém fazer ressalvas ao raciocínio exposto. Seria injusto generalizá-lo, uma vez que existem bilionários que se dedicam a ações de cunho social. 

Analisemos o caso de Warren Buffett, que também figura no seletíssimo grupo dos dez indivíduos mais ricos do mundo. Enriqueceu como grande investidor no mercado financeiro mundial. Com 91 anos de idade, já prometeu doar 99% de sua fortuna para entidades filantrópicas. Teria, inclusive, sugerido a Bill Gates, outro integrante desta lista dos “dez mais”, que doasse 50% de seus bens. 

Cabe especular se o que motiva a atitude de Buffett seria um sentimento de culpa e a consequente necessidade de buscar formas de reparação. Se é que a culpa move alguns dos poderosos bilionários, podemos examinar o que estaria subjacente a ela. Penso que para chegar aonde chegaram devem ter possuído uma dose considerável de avidez a instigá-los; avidez que desliza frequentemente para a voracidade, qualidade esta que embute um nítido componente agressivo. Esta questão foi explorada e teorizada por Melanie Klein. Imaginemos um bebê voraz, que não se satisfaz com o leite materno, ou porque é escasso para o tamanho de seu apetite ou porque o paladar não é do seu agrado. Daí ele pode atacar e morder o seio nutridor, bem como cuspir o leite. Sob a égide desta insatisfação e raiva em relação ao que lhes é oferecido, creio que poderão crescer futuros empreendedores com a fome e o instinto de autênticos predadores. Se não forem capazes de desenvolver um razoável sentimento de culpa, motor para gestos reparatórios, estarão enquadrados na categoria de homens que são lobos dos outros homens. Indago se este seria o caso de Musk, que parece pertencer a um time diferente do de Buffett. 

Penso em algum elemento presente, desde os primórdios, na estrutura de personalidade destes indivíduos que, na lógica capitalista, são considerados os grandes vencedores do jogo da vida. Refiro-me a um aspecto do que Kohut (Formas e transformações do narcisismo, 1984) chama de self narcísico, estrutura pela qual o ser humano seria “empurrado” por suas ambições. Correlaciona esta noção com traços de exibicionismo e fantasias grandiosas. Exemplifica suas ideias com o fragmento de um capítulo de novela, em que se descreve a intensa interação de um bebê com sua mãe. Ela o afaga e vai conversando com ele, dizendo o quanto é lindo, fofo e engraçadinho. O bebê grita, exultando de prazer com o sedutor som da voz e o brilho no olhar da mãe, encantada a admirar seu rebento. Ambos parecem estar em pleno êxtase. Kohut apresenta em seguida um trecho do conhecido comentário de Freud, que afirma: “um homem que foi o favorito indiscutível de sua mãe mantém pela vida afora o sentimento de conquistador e aquela confiança no sucesso que muitas vezes induz ao sucesso real”. Sem dúvida, Freud pensava no amor que lhe dedicou a sua jovem e bela mãe, que o adorava e idolatrava. Ela falava do filho como o “meu Sigi de ouro”. Desde cedo, percebendo sua inteligência, curiosidade e sede de estudos, ela o incentivou e lhe reservou um quarto exclusivo na casa para que ninguém o perturbasse em suas leituras. Este tipo peculiar de relação com a mãe tende a dotar o filho de uma grande dose de autoconfiança e destemor, o que lhe permite ousar, convicto de suas competências e habilidades. Seria algo na linha de um narcisismo saudável, desde que não excessivo. Ressalte-se, portanto, a importância de que estes indivíduos desenvolvam uma sólida noção de realidade, que module as suas características de iniciativa e coragem. Churchill, outro modelo lembrado por Kohut, se orgulhava de achar soluções inusitadas e criativas para problemas que pareciam sem saída, como o êxito em sua cinematográfica fuga da prisão, por ocasião da Guerra dos Boers, em 1899. Na sua autobiografia, Churchill fala do episódio de uma brincadeira de perseguição, quando criança, em que pulou de uma ponte para se segurar em um pequeno pinheiro que havia embaixo. Parecia crente na sua capacidade de voar. Isto lhe custou três meses de cama. Evidentemente, ao crescer e tornar-se um líder político, pôde harmonizar e integrar elementos de racionalidade ao seu componente de self grandioso. 

A respeito do tema das transformações do narcisismo, menciono ainda a possibilidade de aquisição – com o tempo – de qualidades como a criatividade, a empatia, a noção de transitoriedade e finitude, o senso de humor e a sabedoria. Conjecturo que Buffet tenha desenvolvido alguns destes aspectos, que lhe permitem, já na idade madura, a adoção de condutas mais despojadas e generosas. 

Elon Musk é relativamente jovem; está com 50 anos. Será dotado da capacidade de sentir culpa, propiciadora de condutas de reparação? Alcançará o estágio de sabedoria e apreço pelos seres humanos menos favorecidos? Ou só irá exercer seus dotes de empatia em Marte? Quem viver, verá. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Categoria: política e sociedade

Palavras-chave: culpa, exibicionismo, fantasias grandiosas, narcisismo, voracidade. 

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Tags: culpa | exibicionismo | fantasias grandiosas | narcisismo | voracidade
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