Observatório Psicanalítico – OP 304/2022 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

ÁGUAS DE MARÇO

Ariana Marinho da Silva (SBPSP)

No último dia 05, sábado, uma tempestade caiu em São Paulo e deixou a sociedade atordoada e, não, não estou me referindo à chuva que efetivamente caiu naquela tarde, mas sim, ao aguaceiro emocional causado por um evento realizado naquela mesma manhã. Depois de muitos anos de seca, a chuva veio, com muito atraso, e não porque o céu não estivesse nublado e carregado há muito tempo, mas sim porque fomos incapazes de sair de nossa torre no Olimpo para olhar o céu. Achamos que era normal aquele teto cinza, aqueles móveis sem cores, aqueles pensamentos pálidos reverberando pelas paredes sempre tão… brancas.

Uma claraboia foi aberta, o desejo era de podermos apenas dar uma espiada no céu, nos assustarmos com sua potência e, quem sabe, podermos fecha-la novamente, hermeticamente protegidos dentro daquela construção tão fragilmente sólida. Não foi possível, a água veio quebrando tudo, o teto de vidro foi atacado por dentro e por fora, fomos inundados por um turbilhão de emoções que avançaram sobre tudo com a força que só o que é recalcado consegue ter. Alguns tentaram inutilmente manter um guarda-chuva aberto, na vã ilusão de não se molharem, outros disseram que nem haviam notado que o tempo havia mudado (há mais de cem anos), mas ao fazerem isso nos exibiram uma cena tragicômica que apenas denunciou ainda mais nosso enclausuramento.

O evento a que me refiro, é “Questões raciais e formação psicanalítica: É tudo pra ontem.” Um encontro que surge da atenção que alguns membros desse clã de deuses deram ao cheiro da chuva se aproximando, aos ventos fortes que batiam portas e janelas, e até à constatação de que alguns poucos colegas e muitos funcionários estavam sempre muito molhados, alertando para o dilúvio que já ocorria há muitos anos. Psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e de outras sociedades ligadas à FEBRAPSI abriram suas portas, e espero que a mente também, para ouvir verdades duras sobre nossa constituição como grupo e pensar então possibilidades de ação para que as portas não se fechem mais. O espaço foi dado a esses colegas: Thiago Amparo, Wania Cidade, Ignácio Paim Filho, Lia Vainer Shucman, que faziam a ponte entre o prédio tão aridamente seco e o mundo tão constantemente inundado, e o que ouvimos rompeu todas as barragens possíveis. Como pudemos não perceber? Ou sabíamos, mas mesmo assim…?

Que mecanismo perverso foi esse que nos permitiu ficarmos tão secos, enquanto a maioria do nosso país estava tão molhado? Paro com minhas alegorias por ora, porque esse mecanismo precisa ser nomeado e ele se chama RACISMO. Racismo estrutural, presente em todos os tijolos de nossa Sociedade, que alijou dos espaços de poder e conhecimento a maioria de nossa população. Nossa brancura tão seca é sustentada pelo sangue de negros e indígenas que pagaram e ainda pagam diariamente os boletos do nosso privilégio. A força da voz de Thiago, Maria, Wania, Ignácio e tantos que não pudemos ouvir, não pode ser silenciada novamente. Nunca mais.

E o que fazer diante do que ouvimos? Vamos continuar olhando de longe para o céu, esperando que nossas roupas sequem e oferecendo guarda chuvas quebrados para manter a falsa sensação de que estamos fazendo alguma coisa? Vamos colocar pra dentro os negros e indígenas molhados na expectativa de que, protegidos por nossa branquitude salvadora, eles possam ficar tão secos como nós, enquanto o céu lá fora continua a desabar? Ficaremos gozando em nossa culpa neurótica masoquista, enquanto nosso sadismo continua oprimindo, silenciando, matando?

Sei que não há saída fácil para um dilúvio de proporções tão gigantescas como essas, mas com certeza não podemos nos contentar apenas com essas alternativas. É imperativo que façamos mais. Ações afirmativas são urgentes e não podem mais esperar. Precisamos abrir nossas portas institucionais e nossas mentes para essa população, decolonizar nossa Psicanálise e nossa prática. E não apenas lermos sobre o que autores negros têm a dizer sobre o racismo, mas inclusive e talvez principalmente o que eles têm teorizado sobre a prática psicanalítica, como bem nos atentou Ignácio em sua excelente exposição.

E não podemos parar nos nossos muros, é urgente que nos questionemos em nossas práticas diárias. O valor que cada um de nós paga pelas pessoas que mantém a estrutura que garante que possamos apenas trabalhar e estudar é justa? Ou achamos que é um trabalho simples demais e que merece pouco? Aos que têm seus filhos em escolas ditas progressistas, vocês estão atentos para as contradições entre teoria e prática e cobrando ações, como nos alertou Lia? Ou estão esperando que alguém, de preferência uma pessoa negra, denuncie essas práticas? Os exemplos são muitos e precisamos nos questionar, refletir e, principalmente agir.

Dizem que “quem está na chuva, é pra se molhar” mas,  nem tão inconscientemente assim, nosso desejo acaba sempre sendo o de molhar apenas as partes menos importantes, de estar despojado de equipamentos sensíveis à água e, se possível sem compromissos que possam ser atrapalhados. As tempestades não respeitam esse nosso desejo, elas chegam lavando e arrastando tudo o que está na frente, talvez para nos lembrar que, quando se trata de sangue derramado, é sempre “ Tudo pra anteontem”.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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Tags: Pacto da branquitude | Racismo | Sociedade
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