Observatório Psicanalítico – OP 302/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

A MISOGINIA EM PAUTA: “elas são fáceis porque são pobres”

Aline Santos e Silva (SBPdePA)

​“Elas são fáceis porque são pobres” é a frase emblemática de uma série de áudios enviados por um deputado estadual de São Paulo a seu grupo de amigos, seus “manos”, como ele os chama. Irmanado a estes outros homens, ele descreve a viagem realizada para a zona de guerra da Ucrânia, narrando mulheres tal qual contaria das paisagens turísticas. Ressalta-se que as belas mulheres fáceis são pessoas em fuga de uma guerra brutal e que ameaça a todos nós. 

​No exercício de me tornar psicanalista abro espaço todos os dias para o “não saber”. Nesta guerra, há muito que não sei, mesmo que me informe a respeito. Não sei dos aspectos geopolíticos da região, não sei das oligarquias russas, não sei das armas atômicas envolvidas. Não sei sobre ser uma refugiada em zona de guerra.  Tampouco sei sobre as “zonas de guerra” brasileiras, e elas são tantas… Mas sei sobre ser mulher: sobre isso sou capaz de discorrer, mais do que teorizar. E ser mulher é vivenciar, em algum ponto da vida, a crueldade da misoginia. 

​Tal experiência  me leva à data de hoje, pois escrevo este texto em 8 de março, “dia internacional​ da mulher”. Historicamente, este dia é celebrado desde o início do século passado. A data surgiu junto à primeira onda feminista, o movimento sufragista que pregava a importância do voto feminino. Esta data também  marca  um evento macabro: o incêndio em uma fábrica em Nova York, onde 129 mulheres morreram. Os portões foram fechados para que elas não parassem de trabalhar. O fogo as consumiu. Logo ali, século passado, não havia espaço para a subjetividade feminina, tampouco desejos e reivindicações. Mulheres queimadas como foram queimadas as “bruxas” séculos antes. 

​“Elas são fáceis porque são pobres” é uma frase emblemática, de uma evidente misoginia, conforme dito acima. Relembrando que, se abraçamos o “não saber”, precisamos, sempre, no encontro com o novo, redescobrir aquilo que já conhecemos: misoginia refere-se ao ódio à mulher, ao desejo de subjugá-la, submetê-la, despojar-lhe de sua singularidade e subjetividade. O deputado estadual retirou a humanidade das mulheres na fila de refugiadas. Como não enxergar a dor e o temor destas mulheres que precisam buscar abrigo em outro país, deixando para trás sua casa, seus pertences e seus familiares? Além do evidente temor de uma das armas mais implacáveis utilizada em guerras: o estupro. “Ser fácil por ser pobre” conversa com a cultura do estupro pertinente ao machismo estrutural que nos perpassa. 

A expressão  “mulher fácil” é parte desta cultura que culpabiliza as vítimas e torna a violência contra a mulher um problema de complexa solução. Por incrível que pareça, o tal deputado, muito presente nas redes sociais, perdeu menos de 2% de seus seguidores após o vazamento dos áudios. O dito (e o não dito) foi explicado como “molecagem”, da do à passagem a conotação de algo infantil e de pouco amadurecimento. Até quando atitudes como esta serão “desculpadas” como se brincadeiras fossem? Aqui cabe rememorar o caso do famoso jogador de futebol e o estupro coletivo cometido na Itália, onde os envolvidos também se utilizam do termo  “brincadeira” como justificativa ou estratégia para não serem responsabilizadas. Falas e atitudes como essas, normalizam a cultura do estupro. Para além, percebe-se o evidente desrespeito com o “brincar”, etapa tão cara no  desenvolvimento da infância – e que, se espera, possa persistir na vida de todos nós – composta do não saber e da busca lúdica pela compreensão e posterior  descobrimento do mundo. 

Cabe nesta discussão a frase de Maya Angelou (1928-2014), escritora americana: “Eu sou feminista. Sou mulher desde sempre, seria estúpido não estar do meu lado”. No rol de associações, lembro da camiseta que fez sucesso alguns anos atrás, com a frase: “we should all be feminists”, algo como “nós todos deveríamos ser feministas”. 

E, claro, logo surge Freud, homem de seu tempo, mas capaz de dar escuta às angústias femininas, e seu célebre questionamento: “o que quer a mulher?” A pergunta, difícil de ser respondida no campo do individual – pois coloca em cheque a problemática do desejo – tem uma resposta mais concreta quando transposta ao social: “Freud, querido, as mulheres querem que seus direitos fundamentais sejam respeitados.” Ainda temos muito a caminhar neste sentido, mulheres pobres ou ricas, de olhos azuis ou castanhos, na Ucrânia ou no Brasil. 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Imagem: foto da Reuters – agência de notícias britânica

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