UTOPIAS REAIS
Marilsa Taffarel (SBPSP)
As conferências proferidas no Brasil por Christian Laval e Pierre Dardot e a leitura de seus livros “A Nova Razão do Mundo” (2016) e “Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI” (2017), ambos editados pela Boitempo, pareceram-me valer uma brevíssima e incompleta apresentação.
Começo por me perguntar que utopia poderá rivalizar com as distopias da Netflix que nos fascinam e apontam para um futuro – já presente – catastrófico? Futuro que se afigura dificilmente contornável, como evidenciam nossos autores [1]: o sistema ultra-neoliberal dominante é regido pelo princípio de que todo limite deve ser ultrapassado. Este é o novo mundo que vem sendo construído – e se trata de um “mundo sem limites” – onde limite passa a ser sinônimo de ultrapassável [2]. Florestas, rios, normas e instituições que garantiram direitos duramente conquistados são “coisas” a serem varridas quando necessário. Direitos de saúde, de educação, de moradia, de comida não envenenada, direitos de povos ancestrais são limites à lógica da concorrência dos mercados, à lógica do capital nessa sua atual fase. Podemos dizer que a consigna vigente é: nenhum obstáculo ao capital para o capitalismo sobreviver.
A força e a eficácia desta nova razão do mundo consistiriam no fato do atual regime ser mais do que um regime econômico e um regime político. Trata-se justamente de um sistema de normas que visa “a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos”.[3] A racionalização da existência visa mudar a alma e o coração das pessoas. [4] “Foi Margaret Tatcher quem deu a formulação mais clara dessa racionalidade: Economics are the method. The object is to change the soul.” A economia é o método. O objetivo é mudar a alma.[5]
A partir dos anos 1970 a reinvenção do capitalismo (neoliberalismo e ultra neoliberalismo) produz uma nova subjetividade e novas patologias. Porém, a formatação da subjetividade não é um fenômeno novo. A chamada virada “psi”, isto é, o uso da modelação do psiquismo, junta-se a outras seculares tecnologias de controle antes mesmo do século XIX. A essa verdadeira mutação Foucault chamou de governamentalidade. Recorro, neste ponto, às palavras proferidas em 1978 pelo próprio Foucault:[6] “Hoje o controle é menos severo e mais refinado, sem ser, contudo, menos aterrorizador. Durante todo percurso de nossas vidas, todos nós somos capturados em diversos sistemas autoritários: logo no início na escola, depois em nosso trabalho e até em nosso lazer. Cada individuo, considerado separadamente, é normatizado e transformado em um caso controlado por um IBM.“ [7]
Gorvernamentalidade: um tipo de racionalidade empregada nos procedimentos – discursos, práticas, dispositivos – pelos quais é dirigida, através de uma política de Estado, a conduta dos homens.[8] As subjetividades são regidas pelo princípio universal da concorrência. Cada um deve considerar a si mesmo uma empresa que visa a flexibilidade, a superação sobre qualquer obstáculo de qualquer ordem, a gestão de si próprio. Eis uma imperiosa forma antropológica: a medida do Homem é a empresa. Assim ele deve agir por si mesmo com destemor e enfrentar a sociedade de risco, assim deve se pautar sua relação com os outros destituindo a vida associativa.
Nossos autores, Laval e Dardot, reúnem criticamente análises anteriores com o propósito de atualizá-las, mostrando como a manipulação dos corpos e do psiquismo no atual estágio de desenvolvimento do capital vêm gerando a busca do gozo total e gerando debacles pessoais por depressão e estímulo à perversão pela apologia constante da transgressão à norma. A questão torna-se menos a falta, no sentido que lhe dá a psicanálise, ou seja, a incompletude, e mais a insuficiência. Um mundo sem limites em que uma das metas seria a rejeição da castração e o reinado da onipotência. Vemos crescerem as solicitações de metilfenidato (Concerta, Ritalina) para otimizar o desempenho, para “manter a forma”, para não cair na obsolescência e no vale dos fracassados. Subjetividades capturadas pelo fantasma da marginalização e pelo fruir do desempenho.
Estaria então em curso o projeto de fim do “Mal Estar na Civilização”, como o pensava Freud? Nos tempos que correm há, de fato, um apelo para eliminar o mal estar promovido pela vida civilizada, onde nossas pulsões se mantêm libidinizadas justamente pelo limite ao gozo total. A criação de consumidores ávidos, pessoas entregues ao gozo do desempenho, de um lado, e, de outro lado, a espetacularização da corrosão dos laços sociais, da solidariedade, da reciprocidade social e simbólica é o que constatamos assombrados. Para nós, que vivemos no Brasil hoje, não há como fugir dessa evidência.
Os autores, aqui drasticamente sumarizados, assinalam, fundados também em conceitos psicanalíticos, o enfraquecimento dos ideais encarnados em instituições – nenhum principio ético resiste, nenhuma proibição. Recolhem a concepção de Lacan do “discurso capitalista”. Um discurso que rejeitaria, ejetaria a castração para fora do mundo simbólico e induziria ao uso, até o esgotamento, dos recursos do planeta, ao esvaziamento das formas institucionais e simbólicas.[9]
Não se trataria apenas, como a psicanálise tem apontado, de eliminar o simbólico que estava encarnado em determinadas instituições, e sim instrumentalizá-lo, ou seja, vetorializar os ideais para instituições como o mercado, a empresa. Não haveria uma dessimbolização e sim uma instrumentalização por parte da lógica econômica capitalista da estrutura simbólica. As identificações se dariam então com cargos, funções, competências próprias de empresas.
Os movimentos desejantes – que visam ir além dos limites individuais e sociais longamente estabelecidos – precisam de formas novas de sociabilidade, que se organizem em modalidades diversas para não serem abduzidos pelos ideais da competência, cujo paradigma é o super atleta, aquele que tem sua existência atrelada ao coaching. Uma mudança antropológica se faz necessária. Uma nova ontologia se faz necessária, onde a divisão não é, de um lado, o humano e, de outro, a coisa planeta a ser exaurida, devastada. A terra, o animal, a água, o vento são seres e não coisas.
Faz-se necessária, como tantos têm alertado, uma epistemologia alternativa que reconheça saberes diversos dos dominantes no mundo ocidental, branco, eurocêntrico.
Os autores nos oferecem, com a expressão “utopia real”, uma concepção que difere das utopias “meramente mentais” do século XIX, o século das utopias sociais. O real, da expressão “utopia real”, diz respeito às práticas existentes em curso em vários pontos do planeta. Empreendimento de caráter grupal, coletivo, apoiado em experimentos, em interconexões que nos fazem reconsiderar nossa relação com nosso habitat a partir de nossos saberes e de saberes e práticas que vêm de culturas tradicionais. Gera-se, a partir da conjugação de todas estas esferas, o que os autores resolveram chamar de comum. Nada é comum por natureza, uma atividade em co-participação, sim, pode pôr algo como comum. Não sendo o comum um objeto, mas um principio. Uma concepção que nega veementemente a expressão latina homo homini lúpus.
No final da primeira década desse século, houve movimentos espantosamente fortes e intensos de jovens tomando lugares públicos. Movimentos que se estenderam até meados da década seguinte. Dois milhões de manifestantes tomaram a praça Tahir em janeiro de 2011 no Egito; O Parque Gezi e a praça Taskim foram palco de grandes manifestações na Turquia em 2013; também em 2013, protestos em diversas capitais do Brasil, dezenas de milhares nas ruas, sobretudo jovens, com reivindicações diversas de caráter emancipatório (que, como sabemos, foram radicalmente desviadas pela exaltação ansiosa de medidas fortes regressivo-repressivas).
Coloca-se então a questão: o que ocorreu de diverso no Chile, onde manifestações que se tornaram crescentes, abrangeram demandas produzidas por 30 anos de privatizações (água privatizada, aposentadoria privatizada, saúde, universidade não inclusiva)?
Dois fatores são apontados: repressão policial cada vez mais violenta e crescentes manifestações que se encaminharam para uma palavra que ecoou em uníssono: uma assembleia constituinte que revisse a precarização da vida da maioria, embora o produto interno bruto do Chile continuasse crescente. Teria havido ali a instituição do comum?
O que tornaria a solidariedade, a luta pelo comum, um valor tão ou mais pregnante que a indiferença social?
Sugiro que a luta e a experiência do comum nos colocam a possibilidade de uma rota alternativa ao desamparo ou ao estado de desamparo [10] (Hilflosigkeit), poderoso conceito de Freud, cuja tradução em italiano nos diz muito: l”essere senza aiuto.
Na criança, como sabemos, o desamparo leva à vivencia de satisfação por intervenção de uma pessoa capaz da ação específica de cuidado, e à satisfação alucinatória na ausência desse cuidado externo. Já no adulto, o estado de desamparo (l’essere senza auito) é o próprio traumático.
O que estou sugerindo é: quando somos atingidos, e o somos diariamente, pelo desamparo advindo de “dentro”- exigências subjetivas de sermos super atletas em jogos mortais – e de “fora”, por exemplo, o espetáculo da ausência de limites, a ação comum, seja através da internet ou, de forma verdadeiramente eficaz, em presença, representa uma saída para o desamparo que, como condição essencial do ser humano para Freud, não é eliminável.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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Notas:
[1] Os autores de apoiam em M. Foucault, G. Deleuze, F.Guattari, R. Sennet, em U. Beck, D-R. Dufour, S. Freud, J.Lacan, C. Melman, S.Lash [para citar os, provavelmente, mais conhecidos entre nós).
[2] Dardot, P. e Laval, C. in A Nova Razão do Mundo, p.362.
[3] Dardot, P. e Laval, C. in A Nova Razão do Mundo, p.16.
[4] Dardot, P. e Laval, C. in A Nova Razão do Mundo, p. 27.
[5] Dardot, P. e Laval, C. in A Nova Razão do Mundo, p.331. Os autores citam uma afirmação de M. Tatcher ao Sunday Times, 7 de maio de 1988.
[6] Foucault, M. in Michel Foucault – Estratégia, Poder-Saber. Coleção Ditos e Escritos IV, Editora Forense Universitária Ltda. 2003.
[7] Idem, p. 307.
[8] Dardot, P. e Laval, C. in A Nova Razão do Mundo, p.17.
[9] Dardot, P. e Laval, C. in A Nova Razão do Mundo, p. 368.
[10] Em seu Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis justificam a tradução francesa de Hilflosigkeit por estado de desamparo.