Observatório Psicanalítico – OP 291/2022

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Ah! O amor… “Niketche – uma história de poligamia”, de Paulina Chiziane

Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP e GEP São José do Rio Preto e Região)

“Niketche… uma dança do amor, que as raparigas recém-iniciadas executam aos olhos do mundo, para afirmar: somos mulheres. Maduras como frutas. Estamos prontas para a vida!”

Paulina Chiziane, primeira mulher moçambicana a publicar um romance em seu país, ao receber a notícia de ter sido laureada, em 2021, com maior prêmio literário da língua portuguesa – o prêmio Camões – diz em uma entrevista comovente: “Meu Deus! Eu já não contava com essas coisas bonitas… não foi fácil começar a publicar sendo mulher e negra. Depois de tantas lutas, quando achei que estava tudo acabado, vem esse prêmio. O que eu posso dizer? É uma grande alegria.”

É essa mesma simplicidade e abertura ao surpreendente que transparece em seu livro “Niketche, uma história de poligamia”, em que fala sobretudo de amor, sexo e desamparo. Apresentando a mulher ora em carne viva: na sua dependência e desespero, e ora revestida por uma força imensurável na luta pela sobrevivência.

É uma obra complexa, poética, passional. Não apresenta soluções e fórmulas fáceis: se por um lado, na poligamia, dentro da cultura tribal o homem tem o compromisso de sustentar financeira e afetivamente todas as esposas e filhos, esse sistema também é retratado na sua violência: além da opressão dada pela desigualdade de gênero, por causa dos ciúmes, da competitividade, é frequente que as mulheres vivam em guerra velada entre si, muitas vezes a ponto de envenenar a rival, tirando sua vida.

Por outro lado, a chegada do colonizador cristão que instaurou a monogamia como modelo “oficial”, na prática contribui para a permanência de uma poligamia clandestina que desobriga o homem de suas funções e cria um exército de mulheres desamparadas financeiramente, com filhos bastardos e desprotegidos, vivendo na miséria.

A questão social não é desconsiderada. E a crítica ácida não poupa nenhum dos envolvidos, o livro é recheado de frases que denunciam tanto o desejo masculino em se manter no poder, quanto as vantagens que as mulheres creem ganhar em seus arranjos: “quando o casamento ganha características de emprego, mais vale suportar as birras de um marido rabugento, para garantir o salário seguro no final do mês”.

Porém “Niketcke”, mesmo revelando a dor inevitável presente nas relações, surpreendentemente não abre mão do bom-humor, talvez por isso consegue não perder de cena a busca pelo amor e não se transformar em lamento e amargura, principalmente porque propõe a sororidade como ponto forte. 

Se o corpo é campo de batalha nessa vida, as vitórias concretizadas nas possibilidades de encontro, desvinculadas das questões de gênero, compensam a luta.

Recorrendo a Guimarães Rosa: “qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”, por isso nesse começo de ano, vale deixar-se invadir pelo amor destilado a cada página pela potência dessa mulher negra, pobre e que se apresenta nua e desarmada. Um descanso na loucura cotidiana.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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