Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Glória Watkins deixa bell hooks como herança
Renata Innecco Bittencourt de Carvalho (SPBsb)
Gloria Jean Watkins estava ao lado da família e dos amigos em sua casa, nos Estados Unidos, quando faleceu, aos 69 anos, no dia 15 de dezembro de 2021. Sua história de vida imprimiu marcas singulares na teoria e na prática do ativismo social. Como escritora, professora, crítica cultural e poetisa, deixa para o mundo uma longa e significativa produção literária sobre racismo, feminismo, pedagogia, capitalismo e cultura.
Glória construiu minuciosamente um legado, usando a sua própria história como um ato político, como um exemplo de luta contra as injustiças sociais, na qual suas armas principais foram a sua escrita e a sua fala.
Em busca de utilizar seus livros como instrumentos de transformação dissociados de si mesma, assinou as obras com o pseudônimo “bell hooks” – em homenagem a sua avó Bell Blair Hooks – mas grafado com as letras iniciais minúsculas, como um ato político. Sua ideia era de que a obra sobressaísse à autora, focando no conteúdo da escrita e não na sua pessoa. Transitando com maestria entre o individual e o coletivo, entre o particular e o público, exaltava e valorizava a diversidade e a alteridade. Sem incentivar o ódio ao diferente – mulher, não era anti-homem; negra, não era anti-brancos -, defendia a pluralidade de pensamentos quando o objetivo a ser alcançado contribuía para o fortalecimento do movimento contra a opressão.
Uma mulher negra que sentia a necessidade de escrever e publicar seus trabalhos para conscientizar e engajar pessoas, independente do gênero e da cor da pele, em movimentos anti-sexistas e anti-racistas. A linguagem de suas dezenas de livros – muitos deles escritos em primeira pessoa – era simples, clara e atemporal. Escreveu para ser compreendida e não para demonstrar a sua capacidade de rebuscamento literário.
O livro “E eu não sou uma mulher?”, lançado em 1981, foi considerado uma das obras mais influentes daquela época e é um clássico da teoria feminista. “O feminismo é para todo mundo” foi uma obra escrita com o objetivo de aproximar as pessoas da temática feminista e demonstrar que se trata de um movimento “contra o sexismo, a exploração sexista e a opressão”, ao invés do que se difunde erroneamente como “um movimento anti-homem”.
Após ter contato com a obra de Paulo Freire, defendeu a educação humanista como prática central da liberdade transgressora na luta antirracista e anticapitalista. Enquanto a educação, por ela defendida, deve estar situada na centralidade dos movimentos sociais, o amor é apresentado como elemento nuclear de cura. Na publicação “Tudo sobre o amor”, bell hooks considera amar como um ato político que, entre outros potenciais, tem o poder de curar. Na busca pelo amor nas relações com os outros, ela enfatiza a necessidade do cultivo ao amor-próprio, mesmo que o processo cause feridas. Segundo bell hooks, a base de toda prática amorosa é o amor-próprio, sem o qual falham todos os outros esforços em busca de amar. Assim como Pierre Fédida associa a pluralidade da palavra amor a um buquê de flores enfeixadas, bell hooks escreveu sobre as diversas possibilidades de amar.
Sua produção deixa evidente a sua genialidade, a sua capacidade de ultrapassar as barreiras resultantes das fronteiras ilusórias do conhecimento. Seus registros contribuem para a prática psicanalítica implicada, trazendo, na voz das suas feridas e das suas conquistas, a fala dos segregados silenciados, e evidenciando o sofrimento de muitos pacientes que frequentam os consultórios de psicanálise contemporâneos e, ainda mais, daqueles que se encontram desamparados.
Como um imã, os escritos de bell hooks podem transitar pela identidade analisada na perspectiva dos Estudos Culturais, particularmente, da obra de Stuart Hall. No que tange ao empoderamento feminino, suas ideias representam uma oportunidade de refletir sobre os textos de Mariam Alizade e, particularmente, podem fazer recordar a história da desbravadora psicanalista Virgínia Leone Bicudo. E ainda, infinitas associações como a da “cura pelo amor”, por ela defendida, nos permite enlaçar suas ideias com a célebre frase da paciente de Breuer e Freud que se refere ao seu tratamento como “a cura pela fala”.
A exposição corajosa da vida particular de Glória – entre as injustiças sociais diante do racismo e do machismo – e o conjunto da obra de bell hooks representam e simbolizam a mentalidade coletiva, no sentido bioniano, dos grupos de pessoas que se encontram oprimidas socialmente. Nessa perspectiva, bell hooks é um conjunto de palavras escritas capaz de dar voz ao silêncio de grupos injustiçados e oprimidos ao longo da nossa história.
Glória deixa o convívio com seus familiares e amigos, mas, com e por amor, entrega bell hooks como herança para a humanidade. Que saibamos fazer dela instrumento de cura!
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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