Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Política, Psicanálise e Religião
Júlio Gheller (SBPSP)
Cena 1
Em 29/10/2018, logo após ser eleito, Jair Bolsonaro apareceu na TV para o habitual pronunciamento da vitória. Em lugar de discursar, passou a palavra para o senador Magno Malta, pastor evangélico, grande incentivador da campanha e, até então, sério candidato a um posto – que acabou não se concretizando – no novo ministério. A seu pedido, todos os presentes deram as mãos. Malta deu uma mão a Bolsonaro e a outra ao deputado e futuro ministro Onyx Lorenzoni, iniciando uma oração em que juntava Deus e política. Eis alguns trechos: “Começamos esta jornada orando…Os tentáculos da esquerda jamais seriam arrancados sem a mão de Deus…A Tua palavra diz que quem unge a autoridade é Deus e o Senhor ungiu Jair Bolsonaro.” Malta e Bolsonaro foram deputados à mesma época, unidos por afinidades em torno de pautas ultraconservadoras. Contudo, o protagonismo de Malta no dia da eleição de nada valeu para o antigo cantor gospel, uma vez que acabou sendo desprezado na formação do Ministério. Quem se deu bem foi uma ex-assessora de Malta, a controvertida Damares Alves, também pastora evangélica, que abocanhou o cargo de Ministra das Mulheres e Direitos Humanos, posto para o qual era totalmente despreparada.
Cena 2
A ministra/pastora Damares ficou bastante conhecida pouco depois de assumir. Em momento de autenticidade tragicômica ela disse, usando de tom professoral de quem se considera autoridade em questões de gênero, que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”.
Damares destacou-se ainda mais ao comentar um vídeo que viralizou na internet. Participando de um culto em igreja batista no ano de 2016, ela falava para a plateia sobre o episódio em que teria visto Jesus Cristo, que dela se aproximou para impedi-la de suicidar-se. Aos dez anos de idade tinha subido numa goiabeira, disposta a se matar com veneno por conta de ter sido abusada por um falso pastor. Em 2018, rebatendo as ironias que corriam na internet sobre o aludido fato, proclamava ela, com absoluta convicção, que havia sido salva por Jesus para assumir a missão de salvar as crianças no Brasil, afirmação que parece conter traços delirantes messiânicos.
Cena 3
Em 01/12/2021, assim que o nome de André Mendonça foi aprovado pelo Senado para uma vaga no STF, a primeira-dama – que acompanhava a votação junto a um grupo de fervorosos “torcedores” –, comemorou com muita vibração a confirmação do ministro “terrivelmente evangélico”. Enquanto ele era abraçado e beijado por familiares e amigos, em meio a repetidas exclamações de “Glória a Deus!” e “Aleluia!”, ela dançava, pulava e gritava, proferindo frases em uma espécie de dialeto ininteligível, como que em transe. Para um leigo no assunto a dança causa estranhamento. Posteriormente, vim a saber – lendo um artigo de Anna Virginia Balloussier na Folha de São Paulo – que existe na religião pentecostal uma versão para a ocorrência deste tipo de manifestação. Tratar-se-ia de uma situação peculiar, consistindo de um diálogo do fiel em linha direta com Deus, por meio de uma língua exclusiva, incompreensível para os outros. Apenas o Espírito Santo poderia decodificá-la.
Reflexões: tentando juntar pensamentos soltos
Diante de tais fatos é possível analisar certos tipos de uso da religião para ganhos políticos. Também cabe interrogar se estaríamos presenciando – em meio a fé – a emergência de aspectos que beiram o fanatismo. Neste campo é arriscado emitir opiniões que vão tocar em delicadas questões religiosas e crenças de cada indivíduo. Contudo, correndo este risco, me pergunto se as cenas descritas não estariam mostrando pessoas crédulas, mas também capazes de extremismos, de dar apoio irrestrito a um determinado tipo de líder, alguém que poderia perpetrar os maiores absurdos sem sofrer questionamentos no interior de seu grupo.
A massa, como demonstrado em vários momentos da história – Hitler e Mussolini são exemplos não muito distantes, do século passado –, deseja se identificar com a força e o poder que a retórica exaltada e violenta do líder lhes transmite. Multiplicam-se os seguidores incondicionais e nada os demove da crença inabalável neste indivíduo “especial”. Ele os convence de sua pretensa condição de salvador da pátria, o único habilitado para defender os mais puros valores da moral e dos bons costumes, verdadeiro paladino do bem em luta contra tudo o que há de maléfico na sociedade.
O júbilo do grupo descrito na cena 3 se explicaria pela façanha de colocar no STF mais um juiz aliado, um passo na direção de possível aparelhamento do Judiciário. A ideia é proteger o líder e seus correligionários, integrantes de uma espécie de seita. Os opositores devem ser calados e as diferenças eliminadas. Predomina um clima mental próprio da posição esquizoparanoide, com maniqueísmos do tipo tudo ou nada, oito ou oitenta, santo ou pecador, Deus ou Diabo.
No Brasil temos um Procurador-Geral que não procura e não acha nada, negando as evidências da calamitosa gestão ambiental e do desastroso boicote às medidas de combate à pandemia. Aliás, vale a pergunta sobre o que foi feito do relatório final da CPI da Covid, que apontou indícios de prevaricação, inépcia e, até mesmo, da existência de atravessadores em busca de levar vantagem na intermediação da compra das vacinas. Sabe-se que, no caso específico de detentores de foro privilegiado, dependeria da PGR dar encaminhamento a uma possível denúncia a respeito dos conteúdos que aparecem no relatório. À PGR cabe defender a sociedade, inclusive fiscalizando os três poderes. O STF, por sua vez, é responsável pela guarda da Constituição. Nem o STF e nem a PGR são instituições destinadas a defender os interesses de governantes de plantão.
O comediante Zé Trindade, astro da época das chanchadas, tinha um bordão irônico para situações que lhe causavam espanto e perplexidade: Exclamava ele: “Mas o que é a natureza!!!”. A natureza humana, como apontam estudiosos da pulsão de morte, comporta elementos de auto e heterodestrutividade, inclusive o embriagador gozo de triunfar sadicamente sobre o outro.
A sabatina de André Mendonça fora adiada durante meses pelo presidente da CCJ do Senado por motivos pouco republicanos, diga-se de passagem. Agora, finalmente vencida a resistência, a vitória chegava para ser devidamente celebrada pelos integrantes do entourage presidencial e uma enorme gama de adeptos.
Indaguemos a serviço do que se lança este apelo para a religião. O que representam, em boa parte, os deputados e senadores da famigerada bancada da Bíblia? A resposta sumária é que vários deles representam o conservadorismo mais tosco e obscurantista, com agendas homofóbicas, anti-aborto (até mesmo em casos de estupro), defesa ferrenha da heteronormatividade, Escola sem Partido e minimização da questão ambiental. A parcela da população que comunga com estes valores retrógrados poderá dar votos para a eleição de alguém que os represente. Ao enxergar a queda nas pesquisas de intenção de voto, o presidente redobra a aposta no discurso para os radicais – religiosos ou não – que, por sua vez, trabalharão para angariar mais apoios por todos os meios. As promessas anticorrupção naufragaram – a bem da verdade, para surpresa somente dos incautos – a partir da aliança explícita com o fisiologismo do assim chamado Centrão. Além do mais, a crescente crise econômica tende a favorecer candidatos oposicionistas.
Ao lermos “Mal-estar na Cultura” fica impossível deixar de pensar que a destrutividade do ser humano é um fato, tanto na forma ostensiva e ativa quanto na passiva. Temos observado o aumento da pobreza e da desigualdade social. As instituições de cultura, educação e ciência são sabotadas e o futuro da nação está comprometido pelo sistemático ataque a elas. O clima democrático do período pós-ditadura militar foi substituído por um ambiente sufocante. Sofremos de queimadas concretas e virtuais. O verde se restringe e o ar nos falta.
Oscilo entre sentimentos de desânimo cético e momentos de indignação diante da devastação de suadas conquistas de nossa incipiente democracia. Outro dia me ocorreu, lendo a coluna de Ruy Castro, a lembrança de uma tira de Jaguar, famoso cartunista do semanário Pasquim nos anos setenta e oitenta, que utilizava o humor como crítica política. Refiro-me ao personagem que ele chamou de Gastão, o Vomitador. Em face de situações deploráveis daqueles tempos, o homenzinho só conseguia vomitar. Não por acaso, a náusea faz total sentido diante dos acontecimentos atuais.
Em que medida nós analistas, em sua esmagadora maioria brancos e pertencentes a uma classe privilegiada, estamos nos omitindo enquanto cidadãos? Temos dificuldade em reconhecer nossos traços racistas, machistas, preconceituosos e elitistas, incorporados desde tenra idade. Porventura a experiência de consultório, de aprofundamento em uma relação bipessoal, característica intrínseca de nosso ofício, chega a nos alienar da realidade ampla? A neutralidade do analista, devidamente implicado no processo analítico, não significa, em nenhuma hipótese, ser indiferente em relação às questões do paciente. Analogamente, ele não deveria ser indiferente em relação ao que se passa ao redor, especialmente quando o que acontece é o prenúncio de um mergulho em direção ao mortífero.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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