Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Imagine a dor, imagine a cor: vidas negras importam XIV
Maria José Tavares (SBPSP)
“Brasil atinge 600 mil mortos por Covid com pandemia em desaceleração no país”. Se quisermos ser mais precisos: o Brasil alcançou 600.077 mortes por Covid-19 às 14h da sexta-feira, dia 08 de outubro de 2021, segundo reportagem do Jornal Folha de São Paulo. No ranking mundial, o Brasil está em 2º lugar no número de mortos pela pandemia, ficando atrás apenas do Estados Unidos, que alcançou a marca de 710.173 óbitos.
A hashtag “600.000 não é apenas um número”, surgiu para lembrar que, para cada uma dessas vidas perdidas, há pelos menos uma criança que ficou órfã, uma mãe com o coração dilacerado, um pai em lágrimas, um amigo que chora a perda de outro, um(a) filha(o) que chora a morte do pai ou da mãe, e/ou dos dois. Muitas famílias perderam mais de uma pessoa para a doença. Não bastassem as perdas, ainda lidam com a experiência irreparável de não poderem ritualizar simbolicamente a morte de seus familiares por meio de uma cerimônia de enterro digna e de, assim, vivenciarem seus lutos.
É difícil encontrar alguém que não tenha sido afetado de alguma maneira por essa pandemia. Na minha experiência de mais de dez anos de trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS), não havia vivenciado experiência tão chocante. Em meados ano de 2020/2021 estive trabalhando na linha de frente, dentro de uma UBS (Unidade Básica de Saúde), onde presenciei e atendi muitos(as) usuários(as) vítimas da Covid-19.
Seus relatos, suas perdas reais e simbólicas inestimáveis, suas dores e sequelas que nem sabíamos se seriam reparadas, estavam presentes a todo momento. Lembro-me que fazíamos um monitoramento por telefone para que contaminados não saíssem de suas casas, e muitos encontravam-se sozinhos. Essas ligações faziam muita diferença no dia a dia daqueles que as recebiam. Havia muitas pessoas, inclusive muitos idosos, completamente desamparados. O questionário de avaliação que tínhamos que fazer se tornava, de certa forma, irrelevante, o mais importante era conversar, ouvir e fazer-se presente para o outro que, do lado de lá, sentia-se tão só. Até que um dia eu também entrei para as estatísticas, fui contaminada e senti na pele as mesmas experiências. A solidão, o medo, a angústia que eu tanto havia escutado, agora se faziam presentes em mim.
Todos sabemos que os esforços do atual governo federal brasileiro para combater a pandemia sempre foram na contramão daquilo que a ciência indicava. Para o presidente da república, a Covid-19 não passava de “uma gripezinha”, “um mimimi”. Além de fomentar, com seu discurso negacionista, a inexistência da gravidade da pandemia, entre outras irresponsabilidades, provocou a demora na compra das vacinas, o que fez com que o número de mortes por Covid-19 no Brasil tenha sido muito maior do que precisaria ser.
“É difícil falar que estamos melhor quando batemos 600 mil óbitos. É impossível não relembrar todos os equívocos, erros, negligências que aconteceram nesse período de quase dois anos”, diz Raquel Stucchi, professora da Unicamp e consultora da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia). (Jornal Folha de Folha/2021)
A CPI da Covid é inequívoca nas provas de negligência. O relatório oficial apurou e atribuiu 23 crimes a 66 pessoas e duas empresas e foi lido pelo relator da CPI Renan Calheiros. Ele ainda precisa ser votado e analisado pelo Ministério Público e outros órgãos para que providências sejam tomadas e traz detalhadamente como o governo federal e aliados agiram durante a crise sanitária.
Neste contexto de negacionismo e negligência, aqueles que estiveram com olhos e ouvidos bem atentos puderam acompanhar, seguindo registros nos meios de comunicação, algumas frases do presidente Bolsonaro, as quais figuram entre as mais desumanas já ditas contra o povo brasileiro:
“Eu não sou coveiro”;
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”;
“A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”;
“Eu não sou médico, não sou infectologista. O que eu ouvi até o momento [é que] outras gripes mataram mais do que está”;
E, finalizando com chave de ouro, desferiu: “Nada não está tão ruim que não possa piorar”, frase proferida, em 27.09.2021, durante solenidade que marcou os mil dias de seu governo.
Neste cenário, a pandemia infringe sofrimento principalmente àqueles que já não dispunham de recursos de subsistência sequer para permaneceram em isolamento. Acompanhamos o alto índice de desemprego, o aumento da miséria, fome e todo horror que podemos imaginar.
Tudo é pior quando se trata das populações negra e indígena, que de maneira inescrupulosa, diante de um governo racista e genocida, vem sendo as mais afetadas pela pandemia no Brasil. Até quando? Nosso passado escravocrata, forjado pelo projeto de colonização do país, persiste. A população negra sofre severa desvantagem em relação à população branca. Os povos originários também historicamente sofrem violência, exploração, racismo e são tratados quase como “menos humanos”.
Uma pesquisa divulgada pelo Jornal Folha de São Paulo, no dia (05/02/21), apontou que quase um terço, ou 29,9%, dos adultos na cidade de São Paulo já teve Covid-19, e carrega no sangue anticorpos contra o coronavírus. Esses dados dizem respeito à quinta fase do estudo conduzido pelo Grupo Fleury para mapear a parcela da população que já teve a doença. Há prevalência, 37,8% entre aqueles que se autodeclaram pretos e pardos, um número 1,6 vezes maior do que nos autodeclarados brancos (23,2%), mostrando como a cor da pele representa um fator de maior risco para contrair o vírus na cidade. O índice chega também a 36,4% nos distritos mais pobres (renda média igual ou menor a R$2.200) da capital, em comparação a 22,8% naqueles de renda mais alta.
Outra pesquisa, realizada pelo Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer) e divulgada no dia (06/10/21), analisa as consequências do processo histórico de exclusão social enfrentado pela população negra, e aponta que a morte de pessoas pretas e pardas, causadas por demência, aumentaram aproximadamente 15 pontos percentuais no Brasil em 2020. Para brancos, porém, a taxa de mortalidade diminuiu (-1,4) na comparação entre 2019, ano pré-pandemia, e o período seguinte, dominado pela crise sanitária provocada pelo coronavírus. Um estudo do IBGE – “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população” -, de 2019, evidencia a dificuldade desta camada da população no exercício do direito à saúde. Pessoas negras têm o menos acesso à educação, moradia, mercado de trabalho formal e distribuição de renda. (Geledes, 2021)
Temos uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Esta política é um compromisso firmado pelo Ministério da Saúde no combate às desigualdades no Sistema Único de Saúde (SUS) e na promoção da saúde da população negra de forma integral, considerando que as iniquidades em saúde são resultados de injustos processos socioeconômicos e culturais – em destaque, o vigente racismo – que corroboram com a morbimortalidade das populações negras brasileiras (PNSIPN, 2019 p. 8). No entanto, o que vemos, é o genocídio do povo negro brasileiro. A ausência de investimentos nas políticas públicas para essa população acarreta inúmeros prejuízos à saúde mental, colabora para a manutenção do racismo estrutural, aumenta a desigualdade social, leva à morte e impede o desenvolvimento do país, pois não podemos esquecer que este foi construído pelas mãos negras.
No que se refere aos povos indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com suas organizações de base e parceiros, construiu o relatório “Nossa luta é pela vida” para expor as diferentes dimensões dos impactos da pandemia da Covid-19 para esta população e mantém um site com o objetivo de dar transparência aos dados específicos de contaminação dos indígenas. Os números mostram que mais da metade dos 305 povos que vivem no Brasil haviam sido afetados ainda em 2020.
Um dossiê elaborado pela Coalizão Negra por Direitos, articulação que reúne 250 organizações, entidades e coletivos do movimento negro brasileiro, foi entregue no dia 14/10, ao relator da CPI, Senador Renan Calheiros, E relata os impactos sanitários, sociais e econômicos da pandemia à população negra brasileira:
“Para a Coalizão Negra, a gestão negligente e criminosa do Governo Bolsonaro foi um dos instrumentos mais eficazes para o avanço do genocídio negro no último século. Os dados trazidos pelo dossiê apontam a maior letalidade da COVID-19 na população negra brasileira, e como se agravou nesse período o acesso dessa população a direitos humanos como alimentação, saúde, emprego, educação e saneamento básico. Para as organizações negras que compõem a Coalizão, é fundamental que conste no relatório da CPI da Pandemia a responsabilidade do Bolsonaro no genocídio negro e os impactos sociais e econômicos negativos que essa gestão pandêmica gerou à população negra e povos tradicionais (indígenas e quilombolas)”. (Coalizão Negra por Direitos, 2021)
Dentre as decisões sobre o relatório final da CPI entregue ao Ministério Público, a exclusão dos crimes de genocídio foi debatida em diversos programas da mídia alternativa e contribui para uma avaliação de que o cenário político que permitiria a punição de nossos governantes e aliados não é favorável.
Mesmo após séculos de abolição, o racismo continua destruindo oportunidades, aniquilando corpos negros, indígenas e tirando vidas. O racismo é um sistema de reprodução de condições de desigualdade e sofrimento, por isso afeta fundamentalmente uma crise sanitária como esta que estamos vivendo, pois na hora de decidir quem vive ou quem morre, são as populações mais excluídas que sofrem as piores consequências. Essas populações não têm status de humanidade. Considerando o desastroso governo Bolsonaro, num país com o legado da escravidão e persistente racismo, seria surpreendente se pudéssemos encontrar um cenário diferente.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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