Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Centenário de Paulo Freire (19/ set/ 1921 – 02/ mar/ 1997)
Dora Tognolli (SBPSP)
Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira (2012) , brasileiro mais titulado fora do País, um dos 100 autores mais lidos nas universidades que falam línguas inglesas, Professor de Harvard e Cambridge, com mais de 40 títulos de doutor honoris causa (Oxford e Cambridge, dentre outros).
Precisamos falar mais? Sim: quando se completam 100 anos de seu nascimento, cabe a nós lembrar de seu legado e de sua trajetória, e contar às novas gerações que o arco desse personagem acompanha bem de perto as transformações que marcaram o Brasil no século XX.
No governo atual, Paulo Freire tem sido alvo de extremismos, de intolerâncias e distorções que ofendem gerações que puderam se aproximar e aprender de seu método. O que as novas gerações de brasileiros ouvem a seu respeito, um homem tão odiado pela direita, que o responsabiliza pelo fracasso da educação no Brasil, hoje denominado “Pátria educadora”? E o que podemos nós rememorar e ressignificar, em tempos sombrios, que oferecem barreiras à reflexão e ao diálogo?
Paulo Freire identifica, na escola e no sistema educacional, estruturas de dominação que reproduzem desigualdades, dificuldades e fomentam alienação. Dentro desse sistema, Paulo Freire denuncia o processo de dominação e desumanização que atinge os oprimidos, e propõe um caminho, um método: uma educação crítica.
Trata-se de um método simples e perigoso. Perigoso até porque funciona. Os relatos da experiência de Angico, cidade pobre do Rio Grande do Norte, de 1963, colocam em movimento uma prática baseada em diálogo, escuta, onde palavras geradoras são recolhidas do repertório local. Num documentário que registra essa experiência, intitulada “As 40 horas de Angico”, tomamos contato com esse método, que logo foi identificado como subversivo (“estão criando cascavéis no nordeste…”), e rechaçado com a chegada da ditadura e o desmantelamento das experiências coordenadas por Paulo Freire em Brasília.
Paulo Freire, desde o início, assustou o poder autoritário, uma vez que pensava a educação não como uma técnica, mas como prática de liberdade e acesso à condição de sujeito; o ato de ensinar sempre foi considerado por ele como transformador, envolvendo mestre e aprendiz. E a educação, passaporte para a cidadania.
Com a instauração da ditadura, que o considerava subversivo e perigoso, Paulo Freire segue para o exílio, permanecendo 16 anos fora do Brasil. Depois de passar pela Bolívia e pelo Chile, onde concebe seu livro “Pedagogia do Oprimido”, dirige-se à Europa. Participa de diversos programas de alfabetização em países africanos, ex-colônias portuguesas que atravessavam processos de descolonização. Retorna ao Brasil em 1980, onde a brisa da anistia e do sonho de democracia começavam a nos inspirar por aqui.
Não me sinto a pessoa mais letrada em Paulo Freire, mas me autorizo a falar a partir de três ondas que atravessaram minha trajetória e que me motivaram a escrever esse pequeno texto. Nos anos 70, na faculdade de Psicologia da USP, cursamos a disciplina de Psicologia Escolar, e tivemos muita sorte de conviver com a Prof. Maria Helena Patto, que nos apresentou Paulo Freire. Tal disciplina incluía um estágio em escolas da periferia que faziam parte da rede municipal, mas se encontravam esquecidas e quase apagadas dos mapas da cidade. Nesses territórios marginalizados, com a supervisão de nossa professora, ousamos dinâmicas de grupo com as professoras, que traziam como tema a desmotivação dos alunos. Nessas dinâmicas, com o apoio das leituras e do método de Paulo Freire, tratamos das questões locais (pobreza, desnutrição, abandono pelo Estado, violência, drogas). Lembro vivamente que fizemos um trabalho solicitando que as professoras tematizassem suas dificuldades a partir de associação de palavras. Entre as associações mais recorrentes, elegemos: medo, morte, violência. Nossa ideia foi tratar essas palavras como palavras geradoras e matriz de diálogos entre os alunos. E que as ideias trazidas pelas classes gerassem murais, temas de redação, teatro, rodas de conversa, etc. Tenho vivo, na memória, o quanto essa experiência deu sentido às angústias, bloqueios, e possibilitou que as professoras pudessem tratar desses temas e, a partir deles, propor trabalho e estudo. O método perigoso era este: a cura pela palavra, o trabalho da palavra, que pode ser reencontrado no método de livre associação criado por Freud, também considerado um método perigoso…. Essa foi a primeira onda.
Em meados de 2000, mais precisamente 2008, pude acompanhar o mestrado de uma das minhas filhas, em Barcelona, em Arte- Educação, e Paulo Freire retorna: era um dos autores de referência, para lidar com as práticas de educação de crianças. Ao lado de Piaget, Vygotsky, entre outros, lá estava ele. Fora do Brasil, Paulo Freire permanecia e permanece como um dos autores de referências para lidar com práticas educativas no mundo contemporâneo.
Agora, nos anos 2021, quando se completam 100 anos de seu nascimento, assistimos a um assassinato de Paulo Freire e de sua obra. Tentou-se tirar o título de Patrono da Educação, a ele outorgado. E mais: ele é responsabilizado pelo fracasso da educação brasileira, e proliferam críticas ácidas em sites e plataformas da extrema direita, que pregam a ideia de escola sem partido. Assistimos a um ataque violento ao pensamento crítico, a partir de um pensamento único, fundamentalista.
Em lives recentes, escutamos o presidente atual tratá-lo como “energúmeno”, e o ex-ministro da Educação, como “um bom adversário: sistema ruim, falas confusas, resultado péssimo, e acima de tudo, feio: fácil de bater…” .
Tudo indica que esses argumentos situam-se num sistema de desmentida, mais do que de negação, onde assistimos a um retorno ao real, difícil de enfrentar com argumentos lógicos. Uma lógica delirante, totalitária, que escapa ao debate de argumentos e ao diálogo construtivo que foi a razão de ser de Paulo Freire.
Acredito que precisamos, sim, falar de Paulo Freire, lembrar sua trajetória, recolher seu método – simples e complexo, e contar às novas gerações porque tanto nos orgulhamos de nosso Patrono da Educação. Um homem subversivo, transgressor, que escutava, dialogava e adorava as formas democráticas de convívio e transformação.
E a pergunta que não quer calar: por que o fascínio pelo totalitarismo, pela denegação, pela recusa da realidade, que hoje se torna tão presente entre nós? De que consciência e de que autoengano compartilhado se trata? Como dialogar com quem nunca leu o método perigoso mas é radicalmente contra Paulo Freire? Uma negação precariamente posta, não dialética, que recusa o diálogo e a conversa civilizatória, ferramenta que Paulo Freire praticou com maestria.
Fica aqui um convite de aproximação com a vasta obra de Paulo Freire, que tem o sentido de resistência diante da opressão, do autoritarismo, das fakenews, com a proposta do diálogo – condição necessária para que se atravesse e se supere a alienação.
Referências:
Paulo Freire, 100 anos. Documentário.
v=tG_pVkhzr1c
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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