Observatório Psicanalítico – OP 259/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Nos campos com JULIO…

Celso Gutfreind (SBPdePA)

                            1-

Foram 15 anos de análise, ou seja, de um encontro verdadeiro. Julio abria campos e não há como sintetizá-los; ele ensinando a ser firme (como a sua voz de fora e de dentro), em uma ternura encantada com a poesia. E mais algo nem de um nem de outro, porque de ambos, a terceira melodia, fruto único das duas primeiras, únicas também.

Todo senão, nuança, ambiguidade pendia sempre para o lado mais cheio do copo, conforme a sua metáfora popular, ele que extraía tantas outras, dos locais mais inusitados. A do avião, a do banco, a do diapasão, a do wireless, um mundo de sentidos novos e capazes de vencer as mortes em vida.

E, mesmo sabendo que uma análise não é pedagógica, não evitava ser excelente professor da esperança e do otimismo. Transmitia-os em cada silêncio, em cada interpretação, em cada uma de suas máximas, que eram muitas e se renovavam, livres até mesmo da teoria.

Conhecedor profundo dessas teorias, quando elas pareciam mínimas, tinha as suas próprias, de olho nas do outro, quando autênticas, com essa qualidade essencial, mas rara, até mesmo para os pais: deixar o outro ser e vibrar com isso.

Livre para rir ou mesmo gargalhar, não se furtava em marejar os olhos nos momentos mais comoventes de uma transformação. Criativo, também foi um artesão de móveis, um professor de criatividade, que, mesmo não se ensinando, podia ser aprendida. Um criador de criadores. Um artífice de encantamentos. Um estudioso incansável das pontes desconhecidas entre o corpo e a alma.

Psicanalista, sem deixar de ser mago, tal era a capacidade de acolher a sujeira e incentivar a pérola. Sempre foi claro: não era adepto de análises didáticas, mas de análises. Assim começamos. E, por mais que enfrentasse corajosamente as resistências, ele optava sempre pelo que, além delas, conseguia manter-se vivo, porque queria estar vivo.

E assim terminamos, se é que um encontro desses termina. Depois de fazer pensar, também ensinava a sentir, retirando pedra por pedra, dessas que, ao longo de uma infância e mesmo depois, pifam o aparelho de sentir. E, com ele, o pensamento, como em Pessoa ou Maiakovski, já era sentimento espalhado por quinze anos e uma vida inteira.

Também por isso é enorme a tristeza que eu sinto agora. Do tamanho imensurável de uma gratidão.

                           2-

Dias depois de eu iniciar a minha análise, com o Júlio Campos, encontrei-me com ele, à saída de um show do Chico Buarque. Encontrei-me é modo de dizer; ele nem me viu. Para ser mais exato, nossos carros se encontraram na saída do estacionamento. O meu atrás, e o detalhe, logo mais, será importante.

A satisfação de constatar in loco que o meu futuro analista apreciava o melhor da MPB foi logo substituída pela visão de um braço para fora da janela, terminando em uma mão que segurava um cigarro. Poderia ser recreativo, mas, como havia uma multidão de admiradores da melhor MPB, o primeiro cigarro foi substituído por mais dois, antes que o analista-fumante saísse, sem ser visto.

Mas ouviu, já na sessão seguinte, a minha preocupação com a cena. Júlio manteve-se sereno e, quando terminei as minhas queixas, limitou-se a dizer que eu precisava pensar muito bem, antes de iniciar a analisar-me com um fumante. E não havia ironia em sua fala.

Essa marca, que é o reconhecimento dos próprios limites, sem negar a amplitude de sua própria humanidade, jamais estaria ausente no Júlio, assim como nunca, mas nunca deixaria de reconhecer algum deslize ou algo que o tempo mostrasse não ter sido a melhor das interpretações.

Quanto a mim, já na semana seguinte, pude concluir que um eventual tabagismo não era maior do que as qualidades humanas para além dos ismos e que já se faziam presentes, incluindo essa. Como dizia o próprio Júlio, acertadamente, se já é impossível saber quando e onde vamos morrer, é ainda mais arriscado saber do quê.

Mas, ainda que aqueles cigarros depois de um espetáculo do Chico Buarque (um fumante inveterado) tenham participado do final da jornada do Júlio, não guardo o menor arrependimento de ter vivenciado parte dela.

Mais valem quinze anos fumados e bem vividos do que uns tanto mais, desvitalizados, sem a mesma qualidade de fruição.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

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