Observatório Psicanalítico – OP 257/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Arte e psicanálise: do episódio ao pensamento 

Celso Gutfreind (SBPdePA)

Sobre o recente episódio em torno do Festival de Jazz do Capão, que não recebeu recursos da Lei Rouanet por ter se expressado como antifascista e pró-democracia em sua carta de intenções, podemos dizer um bom bocado de nossos pensamentos. E sentimentos. 

O clima jazzístico é de arte e, afinal, toda arte pode ser o (re)começo de uma (re)abertura para pensar. E sentir. Ou seja, viver melhor do que na vida em si, que era, antes dela, espremida tantas vezes pela realidade. Arte, sim, que a vida não basta. É preciso contá-la, ouvi-la, dizê-la e, para que todos esses verbos sejam eficazes na carne do que se vive, é preciso recriá-la. Artisticamente. Analiticamente.

Tal imbróglio está na história da arte. E da psicanálise, que sequer haveria sem a arte. Como imaginá-la sem o Édipo que a literatura construiu… Ok, há quem imagine, este espaço livre de arte e análise, mas como imaginá-la sem os sonhos? O que seria de sua intepretação, livro basilar da psicanálise, sem as suas tantas referências literárias… Como imaginar Freud sem Goethe, sem Shakespeare, sem Schnitzler, sem Sófocles, sem Jensen, para ficarmos tão somente nos escritores… 

De minha parte, sempre que posso, analiso com arte, especialmente crianças, com estes mediadores culturais e artísticos que são os desenhos e os contos. Contos e desenhos convidam para o deslocamento da metáfora, onde, de forma segura e apartada da “coisa em si”, já é possível continuar pensando e sentindo – o protótipo da saúde mental – até voltar expandido para essa coisa em si e a realidade. A arte consiste em representá-la através de alguma linguagem expressivamente bem sucedida. E a saúde mental, mesmo que não deixe rastros em sons, ferro, tintas ou páginas, também. 

Não que com os adultos seja muito diferente, pois neles costumamos mirar as crianças perdidas, ou seja, analisar. E, na hora agá do (re)encontro, uma artezinha é sempre necessária, nem que através do ferrolho de um livro, um filme, uma canção, uma série do Netflix. Quem suportaria a vida em si? E não há adulto ou criança que não saia de uma análise que se diga bem sucedida mais artista (criador), e não necessariamente menos sintomático, pelo contrário… 

A análise contemporânea parece apostar menos fichas na primeira tópica de uma esfinge que decifra do que na posição estética de um analista à la Meltzer, que acredita no resgate, através da transferência, de um ancestral maravilhar-se a dois com o mundo. E, depois, elaborar ou preencher com arte o que lhes falta.

Sobre o episódio recente, envolvendo as buscas de verba pública para um Festival de jazz, o Governo Federal, em seu departamento dito cultural, negou o apoio, alegando ideologização na carta de intenções dos produtores. E, não bastando, evocou Deus, ou o Criador, em seus argumentos para a recusa. 

Sim, há quem busque Deus e o encontre na arte – vide tantos museus ao redor do mundo e ao longo da história -, e por que não? Mas uma arte, tal qual a psicanálise artisticamente construída, oferece o encontro com aquilo que é uma necessidade sempre original, seja Deus, pai, mãe, etc. Não é de fora para dentro, pelo contrário. Não é imposto, como uma neurose, pelo contrário, já que a arte serve justamente quando não serve e consola-nos de um desamparo invariavelmente peculiar. 

Com os contos, por exemplo, em sua recepção junto às crianças, já vi o lobo representando a falta da mãe, a falta do pai, a falta do irmão, a falta da vida. Reduzir a arte, evocando Deus (ou Bach), tal qual fez o Governo, ao contrário do que pode parecer, é censurar, e a censura, novamente em voga, será sempre uma inimiga da arte e uma amiga das inibições. 

De minha parte, penso que os organizadores do Festival nem precisavam ser tão explícitos, em suas intenções, ao mencionar uma sempre e cada vez mais bem-vinda posição antifascista e pró-democracia. A arte, da música a qualquer instalação contemporânea, é um espaço tão vasto, aberto e não saturado, que até fascistas célebres e menos deficientes, fora de seus núcleos fascistas, ela vem acolhendo, como fez com um Ferdinand Celine ou um Ezra Pound. No entanto, mesmo eles, uma vez adentrando, respectivamente, a metáfora do melhor da prosa e da poesia, afastaram-se de suas essências pessoais fascistas e, salvos indiretamente pela arte, puderam oferecer um mundo aberto, diverso, pensante, acolhedor, capaz de dar a sentir para o corpo e, psiquicamente, recomeçar. 

Sim, educação, é preciso muito investimento nela. Sim, psicanálise, carece também de muito investimento para podermos aceder ao que chamamos de um maior livre arbítrio para a escolha, seja de um amigo, de um parceiro, de um governante. Mas, do fascismo e de outras moléstias violentas demasiadamente humanas e infelizmente atuais, quando Deus estiver dormindo ou mesmo morto, conforme o diagnóstico de Nietzsche, só a arte poderá nos salvar.   

Toda e qualquer psicanálise precisará dela para livrar-nos da ignorância de nós mesmos, essa que nos leva a “escolher” mal e abrir espaço para a destruição da própria arte e, portanto, da vida em si.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

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