Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
A CORRUPÇÃO NO DIVÃ: é possível mudar uma cultura?
Marion Minerbo (SBPSP)
A convite do Observatório, fui resgatar um texto sobre corrupção escrito em 2015, quando, diariamente, vinham à tona os esgotos da corrupção. Agora, em 2021, o texto continua atual. O esgoto continua a céu aberto com a asquerosa propina das vacinas, o escandaloso orçamento paralelo e sabe Deus mais o quê.
A corrupção sempre foi endêmica entre nós, mas nos últimos anos ela foi oficialmente instituída. Corromper, diferentemente de subornar (pagar propina), significa quebrar em pedaços, desnaturar, tornar podre. O que apodrece? No limite, as próprias instituições democráticas. Por fora, os ritos estão de pé. Por dentro, seu funcionamento está corrompido.
Uma vez instituída, a corrupção torna natural um modo de vida no qual os valores ligados à democracia são desqualificados e se tornam marginais ao sistema. Ela se torna uma cultura.
É possível mudar uma cultura?
Para a psicanálise, a corrupção pode ser entendida como um fenômeno que se produz no entrecruzamento de três espaços psíquicos distintos: individual, marcado por um funcionamento mental paranoico; intersubjetivo, no qual a pessoa que tem poder “enlouquece” com a ajuda das pessoas com quem convive; e cultural / institucional, em que a corrupção se tornou uma instituição / cultura.
Começo abordando o funcionamento paranoico ligado ao espaço psíquico individual. Este indivíduo – pode ser uma pessoa ou um grupo – não é capaz de conceber, nem de processar, situações complexas. Ele simplesmente não tem este “chip”. As situações são simplificadas e reduzidas a um esquema binário, no qual o bem e o mal são vividos como absolutos. Pautada por esta lógica emocional, sua visão de mundo se estreita e, candidamente, gera uma polarização do tipo “nós, os bons, contra eles, os maus”. O que ele pensa é correto, justo e bom, enquanto os outros, e seus valores, são desqualificados. Por tudo isso, ele fará qualquer coisa para atingir seus objetivos. Se é acusado de alguma coisa, ofende-se, porque a acusação é vivida como injusta. Sente-se cronicamente lesado em seus direitos, e por isso é ressentido, rancoroso e vingativo. Estrutura-se em torno do ódio ao outro, visto como inimigo e como ameaça a seus projetos. Todos estes fatores tornam o paranoico potencialmente violento e perigoso.
O segundo espaço psíquico que contribui para o fenômeno da corrupção é intersubjetivo. Ninguém enlouquece sozinho, mas no espaço psíquico constituído pela relação com outros sujeitos. Aquele que detém o poder pode enlouquecer num vínculo com pessoas que, sistematicamente, assumem uma posição reverente, intimidada, subserviente – uma posição de devoção fascinada e apaixonada. Por suas características pessoais, o paranoico está bem talhado para produzir exatamente este tipo de reação. Aquele que detém o poder enlouquece quando se identifica com a mensagem transmitida pelo lado mais infantil de seus seguidores: ele passa a acreditar que de fato é superior aos outros. Quanto mais a sociedade se intimida, menos se torna capaz de barrá-lo, e mais contribui para enlouquecer quem tem poder.
O terceiro espaço psíquico que contribui – e perpetua – a corrupção está ligado à ordem simbólica, que institucionaliza um modo de vida baseado em um pacto perverso. O processo por meio do qual a corrupção se transforma numa cultura se dá em dois níveis: a desnaturação das instituições democráticas e a institucionalização da corrupção.
A primeira acontece quando, em vez de encarnar os valores da instituição, seu representante “se demite” de seu lugar simbólico. Quando seus atos já não sustentam os valores instituídos, a instituição que ele deveria representar se enfraquece e morre. Paralelamente, surge uma nova instituição, que institui como valor a desqualificação da lei – aquela que coloca limites à desmesura de nossos desejos, base do pacto social democrático. O pacto perverso seduz e captura o sujeito acenando-lhe com a possibilidade, vetada pela lei, de gozar mais do que todos. A corrupção como instituição faz do pacto com o diabo um valor e um modo de vida. Poderíamos chamar isso de cultura da pulsão de morte.
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Pensar a corrupção como cultura é importante porque nos ajuda a perceber que o buraco é muito mais embaixo do que o governo deste, ou daquele, partido político. E também porque, enquanto psicanalistas, sabemos que não se muda uma cultura de fora para dentro, por decreto, nem punindo este ou aquele.
O objetivo de uma análise é ajudar nossos pacientes a mudarem de posição subjetiva. Idealmente, serão capazes de fazer o trânsito de uma posição assujeitada à sua história emocional, para uma nova posição – de sujeitos livres, capazes de fazer escolhas e se responsabilizar por elas.
Mesmo nesse nível micro, não é uma tarefa fácil. E no nível macro? É possível mudar a cultura de um grupo, de uma empresa, de uma nação? Se sim, como?
Encontrei uma resposta possível no filme Sindicato de Ladrões (On the waterfront, Elia Kazan, 1954). Escrevi sobre isso em 2016 (“Mudando de posição subjetiva diante da corrupção. Uma análise do filme Sindicato de ladrões. Jornal de Psicanálise, 49 (91), 63-73. 2016). Apoiados no discurso e nos atos de duas figuras de transferência, os estivadores percebem que, ou enfrentam a máfia, ou sua vida não tem mais sentido. A mudança de posição subjetiva começa quando, o que até então era tolerado, passa a ser intolerável. Ao preço de várias vidas, acabam se unindo e se empoderando para retomar sua dignidade e seu futuro. A revolução subjetiva custou sangue, suor e lágrimas.
Outro caminho é o que foi feito pela Alemanha. O Estado reconheceu, se responsabilizou e reparou tanto quanto possível, as atrocidades do governo nazista. Só assim puderam deixar para trás o horror, a vergonha e a culpa, para seguir em frente. No nosso caso, os representantes do Estado precisariam reconhecer, se responsabilizar e reparar os crimes de corrupção perpetrados no passado – punir os criminosos não é suficiente para mudar uma cultura.
É esperar demais? Pode ser. Mas meu palpite é que, enquanto isso não acontecer, não sairemos deste atoleiro.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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