Observatório Psicanalítico – OP 251/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Genocídio   

César Augusto Antunes  (SBPdePA)

Temperaturas Amenas

As temperaturas amenas, as luzes claras do outono nestes tristes trópicos, ou a chegada da primavera afastando os rigores de invernos sombrios na Europa, marcam o que deveriam ser os dias de outono e primavera para todos, momentos de convívio e fraternidade. 

Talvez influências perniciosas de um ano de isolamento por fatores naturais, a pandemia, ou por fatores sociais, comportamentos cada dia mais agressivos e genocidas, conduzem nossas reflexões para o obscuro lugar da destrutividade humana. 

Em um afável mês de primavera, há pouco mais de 60 anos, Adolf Eichmann era julgado em Jerusalém por crimes contra a humanidade. Este fato adquiriu relevância maior, sob meu ponto de vista, que os julgamentos de criminosos nazistas em Nuremberg, pois a partir das observações agudas de Hannah Arendt conhecemos o que hoje chamamos de Banalidade do Mal. 

Comportamentos que, em sua essência, não carregam expressões de ódio ou prazer com o sofrimento alheio. Poder-se-ia dizer, nestes casos, que as destrutivas expressões da pulsão de morte, encontram-se desligadas dos objetos, em sua trajetória destrutiva. O Mal Banal revela-se na indiferença, na insensibilidade com o outro, naquilo que André Green chamou de desobjetalização, apatia diante do sofrimento alheio. Um mal radical que destrói representações-coisas ou representações de objeto e transforma o indivíduo em um alienado de si mesmo.  Um “antepático”, como chamei em outro texto, um ser destituído de paixões.

O “antepático”, pode viver em sociedade, casar-se, ter filhos, uma vida aparentemente normal, mas percebe-se um distanciamento social, uma indiferença quanto ao destino seu ou das pessoas que o cercam. Centrado na tarefa de “ganhar dinheiro”, um tanto workaholic na iniciativa privada, é um burocrata regrado na empresa pública. Sua anedonia o transforma em instrumento essencial para regimes tirânicos e ditatoriais.   

As características do funcionamento banal diante da maldade, segundo Nadia Souki, apresentam três componentes essenciais: a recusa ao pensar, a constituição de uma vida baseada em necessidades e não em desejos e uma dificuldade em distinguir o real do fictício, uma incapacidade de distinguir a verdade das “fakenews”. 

Eichmann “nunca percebeu o que estava fazendo” (Arendt). A incapacidade em pensar foi o que o transformou em um grande criminoso. Ainda a este respeito, Arendt diz: “Essa distância da realidade e esse desapego podem gerar mais devastação do que todos os maus instintos juntos.”   

A recusa ao pensar, ou sua incapacidade, impedem o julgamento e, portanto, a distinção de qualidades. A ausência do juízo de atribuição compromete o juízo de existência, transforma o ser que assim se conduz em mero instrumento da paixão de outros, principalmente, paixões destrutivas. Não podemos esquecer que a essência dos regimes totalitários com cores fascistas é a exaltação de “Ein volk, ein reich, ein füher”. A glorificação da pátria, do povo e do chefe desfaz diferenças e inibe a liberdades de expressão, resultando no enfraquecimento dos outros poderes que constituem a democracia moderna. Tanto o sistema legislativo quanto o judiciário adquirem um valor secundário, existindo somente para reforçar as ordens, leis e conduta jurídica do tirano. Só tem valor o juízo que emana do Líder. 

Seriam estes, então, os fatos atuais que nos fazem assistir alegres cidadãos de meia-idade, em seus carros brilhantes e bem lavados, com sua família sentada nos bancos traseiros, ostentarem bandeiras do país, fazerem sinais de arma com os dedos e sorrirem felizes em direção ao abismo do autoritarismo, pedindo intervenção militar e simplesmente esquecendo da maior tragédia que se abateu nestes novos tempos modernos de “sua satisfação garantida ou seu dinheiro de volta” –  a pandemia? 

Perdemos, de vez, a capacidade de discernir o populismo retórico, a ausência da verdade, a mentira insistentemente repetida até não ter mais sentido na realidade?

A cultura e a barbárie 

Também em uma aprazível primavera, em 1915, o massacre da população armênia pelos turcos otomanos serviu para que um jurista judeu polonês, Raphael Lemkin, iniciasse seus estudos sobre comportamentos violentos e destrutivos contra povos e sociedades ao longo da história. Em 1943, ao observar o comportamento do partido nazista em relação às minorias e aos judeus, principalmente o extermínio sistemático de seres humanos enviados aos campos de concentração, cunhou o termo genocídio para descrever o holocausto. 

O percurso do homem e da civilização ao longo do tempo é repleto de violências e destrutividade. Situações que nos parecem impossíveis de descrever ou imaginar, de compreender e justificar, esquecer e perdoar. Mas que continuam acontecendo. A grande diferença é que agora temos a palavra e com ela a consciência do ato.

Precisamos falar sobre isto, temos agora a palavra e sua representação. Temos conhecimento e consciência. Nomear, e nomear, e nomear a violência todas as vezes em que ela se apresentar. Incansavelmente. Principalmente a violência da indiferença. 

No passado, no comportamento das hordas primitivas e semisselvagens ou nas culturas posteriores, faltava ao homem a consciência do ato, e essa só emerge da ignorância pelo nome que a transforma em noção de comportamento. Não se trata aqui de dizer que somos melhores que nossos antepassados; eles ignoravam ser a escravidão, o extermínio de culturas estrangeiras, a destruição de florestas, a dominação sobre o semelhante, a imposição pela força de homens em relação a mulheres, uma atitude execrável. Mas nós temos a consciência do fato, portanto temos a chance de mudar. 

A consciência é, a princípio, consciência da diferença. Não pode ser nunca a busca do pensamento único, do predomínio do discurso dos vencedores ou a lei dos mais fortes. É um ser igual na diferença. Pessoas diferentes, com reflexões diversas, mas com os mesmos direitos sociais. Sem o predomínio de uma cultura sobre a outra. 

Desta forma, talvez possamos alcançar a compreensão interna, o “insight” do que deve ser a luta entre civilização e barbárie.

Palavras, estudos e experiências universais, ou seja, a história da humanidade (o pleonasmo é necessário neste momento) forneceu acontecimentos suficientes para não repetirmos erros passados, evitarmos as compulsões e repetições que aprisionam o comportamento humano em atitudes incivilizadas e instintivas. Assim, a luta contra a barbárie não é somente a defesa da tolerância em relação às diferentes expressões culturais, ou a ausência de imposição de uma forma de pensar sobre a outra, de uma bandeira sobre outra, de um Deus sobre outro ou a abolição da ficção de raças. Sabemos, ou pelo menos a psicanálise deve saber, que o campo deste enfrentamento se constrói primeiramente na realidade interna, nos conflitos de almas aflitas, nas lutas entre estas estranhas criações da tópica freudiana, o Isso, o Eu e o Sobre-Eu ou supra-Eu. 

Hoje em dia, a consciência das ações que identificam as violências do Eu social em relação ao objeto, o semelhante, tais como: a violência do silêncio diante das injustiças sociais, a violência contra povos e culturas diferentes da nossa, o extermínio de populações por falta de assistência, alimentação ou vacinas se chama genocídio. Esta palavra desfaz o luto diante do ato e exige ação.  

Do coração das trevas do infinito inconsciente deve surgir a luz diáfana do conhecimento consciente através da palavra que diz, “isto é uma maldade”. A ação de comprometimento com o semelhante deve sustentar atitudes de não conformismo, de revolta e do grito que não se cala diante das injustiças e omissões. 

A alma liberta do medo pode então ter consciência do temor inconsciente. A consciência ao oferecer os signos de qualidade mediante a percepção de um período (tempo), cria o pensar recognitivo ou judicativo – capacidade de julgar o certo e o errado – que se colocará como antecipação ao pensar reprodutivo transformando a ação de mera descarga, em ação específica. É um fazer como consequência do pensar e não o fazer sem pensar. Bion lembra isto como três princípios de vida; primeiro, sentimentos; o segundo, pensamentos antecipatórios; o terceiro, sentimentos + pensamentos + Pensamento. Chama a isto de prudência. 

Por estas razões a primeira luta da civilização contra barbárie deve ser uma luta interna, no reconhecimento de nossos preconceitos ou indiferenças, pois ninguém está livre de preconceitos e desejos hostis.  O bárbaro que nos habita, os filhos e filhas das hordas primitivas ainda, em seus sonhos mais secretos, aguardam o retorno do chefe e senhor da horda, com suas ordens e decisões, com suas concessões e violências. Quando o chicote se afasta da pele, durante o açoite, provoca uma sensação tão grande de alívio, que durantes uns segundos podemos até amar aquele que nos chicoteia. A consciência da violência e a descoberta da ignorância revelam então o reinado do conhecimento possibilitando retorno a uma sociedade de iguais, a uma fraternidade. 

Livre dos pensamentos selvagens, ou com eles esclarecidos pela palavra e pela ascensão da consciência sobre o inconsciente, quando pudermos dizer Isso sou Eu ao invés de dizer Eu sou Isso, não negaremos o Isso mas exaltaremos o Eu consciente de seu Isso. Só então poderemos retornar aos aprazíveis dias das luzes diáfanas das meias estações de nossa existência.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook: 

https://www.facebook.com/252098498261587/posts/1992820417522711/?d=n

 

 
Categoria:
Tags:
Share This