Observatório Psicanalítico – OP 248/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

VIDAS NEGRAS IMPORTAM – XIII

UBUNTU –  “EU SOU PORQUE NÓS SOMOS”: Projeto de acessibilidade a negros e negras à firmação analítica na SBPdePA

Eliane Nogueira (SBPdePA)

Um evento chamado “Racismo: o demoníaco estrangeiro que nos habita”. Um negro único chamado Ignácio. Uma mulher especial chamada Ane Marlise. Um racismo estrutural nunca abordado. Uma instituição psicanalítica, branca por sua natureza…

Dia 18 de julho de 2020. Eu ouvia aquela voz forte, quase gritando. Quanto mais ele falava, mais eu me calava. Estava nua, descoberta, vazada em meu racismo, que eu jamais admitira. Aquilo me tocou de tal forma que eu ouvia, me emocionava, pensava, recuava, voltava a ouvir. Muda em meu grito interno. Como pude? O negro único clamava por parceria, não queria mais passar por branco, como muitos ali ainda o consideravam. Criou um mal-estar difícil de ser descrito. Um momento que nunca vou esquecer. Quem viveu isso naquele dia também não.

Do impacto deste evento derivou a convocação de uma reunião geral por nossa presidente, para discutir o racismo institucional. Novamente o mal-estar, o constrangimento, alguma agressividade, uma negritude, muita branquitude. Imersa novamente no estupor das descobertas, ouço uma voz branca como a minha que me resgata, perguntando quem queria participar de um grupo para organizar um modo de aquele negro não ficar mais tão sozinho. Quase com vergonha, pedi para participar. Quem era eu ali? Seria atrevimento? Aos poucos, colegas muito queridos, tão emocionados e vazados como eu, foram se apresentando. Era uma tensão do agora ou nunca. Venceu o agora. Venceram naquele embate Ignácio Paim Alves Filho (psicanalista com função didática da SBPdePA) e Ane Marlise Port Rodrigues (presidente gestão 20/21 da SBPdePA). Os líderes desta batalha ganharam então um pequeno grupo de psicanalistas, muito afinado, formado por Astrid Ribeiro, Beatriz Behs, Cesar Antunes, Eliane Nogueira, Ignácio Paim, Lisiane Cervo e Vera Hartmann. Um grupo que ficou denominado Força Tarefa.

Eles precisariam enfrentar a si mesmos, ao racismo institucional, ao que é posto a quem pensa diferente num país de minoria branca rica e maioria preta pobre. A quem ousa questionar porque não temos negros nas instituições psicanalíticas.

Podemos pensar e teorizar sobre desigualdade social, também não é problema fazermos programas sociais voltados a pessoas de baixa renda, mas fazer algo direcionado ao negro… bem, aí já mexe em outras coisas. 

Admitir que somos racistas até que é nobre, mas ter que conviver e aceitar os negros, ainda mais pagando para que eles sejam psicanalistas, é complexo na origem. Parece que existe um pacto inconsciente de que eles foram arrastados da África para a senzala, não para a casa grande. 

“Por que não fazemos um projeto para todos, sem discriminar ninguém, dirigido aos pobres?” Essa é a pergunta mais comum que surje em todos os debates de qualquer projeto de cotas para negros. De que pobres falamos? Realmente precisamos estudar mais, falar mais, trocar mais. Vamos aos fatos. Quantas pessoas pobres, brancas, já entraram para a formação analítica nas instituições psicanalíticas no Brasil? Inúmeras. Quantas pessoas pobres, negras, já entraram para a mesma formação? 

Na esmagadora maioria das instituições psicanalíticas brasileiras, nenhuma. Em outras, uma. O fatídico negro/negra único. O que prova, no mínimo numericamente, que programas sociais desta natureza seguem servindo aos brancos. Fica a pergunta: quantas instituições tem programa de cotas específicas para negros, no sentido de reduzir tamanha desigualdade? Porque definitivamente os programas sociais institucionais direcionados a pessoas de baixa renda seguem excluindo negros, e são ineficientes na tal diversidade ou tentativa de “igualdade social”. Portanto, é no conceito de raça que se concentra a verdadeira desigualdade social no Brasil. A história do nosso país, deste seu início, prova isto. Um país que foi construído por negros, hoje com a maioria da população negra (56,2%), que não tem negros em nenhum lugar de poder, que conseguem apenas ser protagonistas no entretenimento… pago por brancos. 

Fanon (1980) diz que os projetos de colonização e escravidão desembocaram nesse constructo ideológico de poder que chamamos de branquitude, onde a pele branca configura poder e um maior acesso à progressão na hierarquia social.

Foi questionando isso que colocamos o nome no projeto piloto de acessibilidade de PROJETO UBUNTU, inspirado na filosofia africana cuja essência valoriza o respeito e a solidariedade entre as pessoas. Trata da importância de alianças e do relacionamento entre pessoas, da humanidade para com os outros, cria a ideia de coletivo para as conquistas humanas (“eu sou, porque nós somos”). 

Durante oito longos e incansáveis meses, o grupo se concentrou em conversar com pessoas, participou de eventos, estudou, chamou especialistas do tema, debateu entre si, convocou colegas, questionou todo o tipo de soluções e em algum momento, iniciou a escrita do projeto piloto. Com o pontapé inicial de Ignácio Paim, o texto foi sendo escrito a muitas mãos, incluindo nossa presidente. Mesmo com debates intermináveis, correções obsessivas, detalhamentos e pressionados pelo tamanho da responsabilidade de uma iniciativa como essa, finalmente saiu do forno e foi para a leitura da membresia. Um mês antes da assembleia que votaria o projeto, todos (incluindo candidatos) tiveram em mãos o projeto em sua íntegra.

Em 27 de abril de 2021, a assembleia. Uma sensação de incerteza, medo, uma dor esquisita no peito, tomou conta deste grupo valente, que desafiava uma instituição a se desacomodar de seus próprios preconceitos. Sabíamos que a proposta apresentada era muito ousada. Lá no início do projeto ouvíamos sussuros gritando: isto, assim como está, não passa. 

Ouvimos, reformulamos, insistimos. Mas o interessante é que por mais que houvesse ameaças veladas pairando, o grupo se fortalecia. Em algum momento, talvez no dia da assembleia, uma sensação de alforria nos tomou. Nossa presidente estava gigante. Tomou pra si a responsabilidade da assembleia e o resultado deste evento histórico foi o que não imaginávamos nem em nossos melhores sonhos: a aprovação do projeto por unanimidade. A membresia estava em peso e número neste dia que não esqueceremos tão cedo. Ninguém sabe dizer ao certo como aconteceu (embora saibamos que há um silêncio de quem se constrange). Mas venceu a humanidade, a persistência, o amor à psicanálise que cuida e acolhe, a dignidade em cada um de nós e por fim, venceu um dos maiores valores de nossa instituição, a liberdade. E não combina com liberdade o apartheid psicanalítico que vivemos.  

A pesquisadora Lia Schuman (2012) contesta a ideia de que vivemos uma democracia racial, usada para camuflar um conflito racial aberto e permanente, que mantém a estrutura de privilégio para brancos e evita que os negros avancem na aquisição de sua identidade coletiva. Trazer este “conflito” para as instituições não é tolerado por muitos, ainda mais se for solicitado que o dinheiro que sempre esteve à disposição de brancos, seja dividido com os negros. Este foi um dos pontos cruciais do projeto, fazer com que toda a instituição se implique, através de bolsas de formação, que serão subsidiadas por um fundo financeiro criado especialmente para este projeto (a ser melhor definido e posteriormente votado em novas assembleias) e não  ficar mais na mão de poucos abnegados dispostos a contribuir, dependendo de uma maioria que não se engaja neste tipo de projeto.

Maria Aparecida Bento (2002) faz uma denúncia disto, criando o termo pacto narcísico, uma espécie de acordo silencioso entre brancos, que se estrutura na negação do racismo e na desresponsabilização por sua manutenção. Ela convoca a romper este silêncio e que entendamos que a luta é de todos.

Grada Kilomba (2019) é uma conhecida autora negra que também convoca à luta antirracista, através da conscientização coletiva sobre a temática racial, que não passe pelo modelo assistencialista, mas com uma visão engajada e humanitária. Um resgate do humano como ser único e não dividido em raças.

O projeto ainda vai ser especificado e melhor organizado em como vamos colocá-lo em ação, mas a aprovação já o tornou realidade. Ele já é um projeto vivo!

Ao final da assembleia, como comemoração da conquista, o grupo foi renomeado para COMISSÃO UBUNTU. Africanizamos nosso projeto, com justiça. O Brasil tem uma dívida de gratidão com este povo que construiu nossas casas, amamentou e cuidou de nossos filhos, deu seu corpo e sua vida para que tivéssemos tudo o que eles nunca puderam ter. Eles têm direito à psicanálise, direito à cura pelo amor, à trilha do inconsciente e finalmente, à libertação de terem uma identidade, de se sentirem iguais, por que de fato e de direito são iguais.

Que UBUNTU permeie todas as instituições psicanalíticas deste país. 

Que o negro único vire múltiplo, que a raça seja só a humana, que a contaminação não seja de morte mas de solidariedade. 

Que sejamos melhores do que temos sido…

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

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