Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 31
Novembro/2022
No mês da consciência negra, um jornal paulistano registrou o crime bárbaro cometido na escola de Aracruz (ES) por um garoto de 16 anos, que carregava a suástica no braço. O periódico ilustrou a notícia com a imagem de uma mão negra. A pele que vestia tamanho ódio e fúria, no entanto, era branca. Erro jornalístico? Sabemos que não.
O ato falho condensa nosso racismo estrutural, e a tragédia que a foto representa, o ódio que ferve em nossas esquinas. Identificado com o nazismo, esse ódio viceja e se multiplica em nossa sociedade cada vez mais disposta a fazer do outro que ameaça suas convicções e seus privilégios o inimigo a ser eliminado.
Vale lembrar que é somente após o Holocausto e a criminalização do nazismo que entra em pauta a questão sobre os Direitos Humanos e a consequente discussão sobre o racismo e a discriminação às minorias. A suástica, cada vez mais frequente nos braços, nos gestos, nas ruas e na fala de nossa extrema-direita, é reveladora de uma oposição supremacista – autorizada e estimulada por quem ainda governa o País – inconformada com os avanços que a sociedade civil e as políticas públicas vinham conquistando.
Inimigos e heróis são escolhidos para organizar o aparente “caos” trazido por mudanças no status quo. Um delírio coletivo instigado por uma liderança criminosa e perversa, somado à facilidade de nosso psiquismo para odiar, ferve o caldo de atos como os que negam a legitimidade do pleito eleitoral em nome de uma suposta democracia: “patriotas” tomam chuva e erguem seus braços para nos salvar de um mal terrível que está prestes a nos destruir. Alemanha, 1930? Brasil, 2022!
Nesse mês, tivemos no OP diversos ensaios e discussões na tentativa de elaboração para tantos abusos, manipulações, fake news, desmentidas.
Inauguramos nossas publicações com o ensaio, de Luciana Saddi (SBPSP), OP 347/2022, “Confusão de línguas: pintou um clima, pintou um crime na presidência”, no qual a autora denuncia, com destreza, a perversidade do Presidente diante de meninas em situação de extrema vulnerabilidade, e nos traz nosso triste histórico: “A violência contra a infância e contra a mulher é parte intrínseca do modelo sociocultural do país que naturaliza a discriminação. Os valores machistas e patriarcais são os fundamentos desses crimes. Bolsonaro expressa tais valores e até os exalta sem nenhum constrangimento ou vergonha”. Sim, só nos resta constatar que é nessa estrutura que o bolsonarismo finca suas raízes, se fortalece e segue se desenvolvendo.
Avelino Neto (SPBsb), no ensaio “Rabiscos. Sobre ideologias externas e psíquicas. O que está voltando naquilo que está vindo?”, OP 348/2022, traz sua reflexão sobre o que é ideologia e como ela participa de nossas vidas e de nosso trabalho enquanto psicanalistas, destacando que “Ideologias, em particular as político-sociais, têm tido penetração considerável em todos os meios, do qual o nosso, psicanalítico, não tem imunidade, pelo óbvio de ser constituído por humanos…”, e continua: “O que se questiona aqui é se Instituições Psicanalíticas, Sociedades de Psicanálise, cuja principal função seja a formação de novos analistas, cedam seus nomes e tarjas, intramuros, para propósitos de partidarismos políticos e seus ideais, nas atividades de formação que exercem influência na prática psicanalítica, como seminários clínicos e teóricos e, em particular, adotar alguns daqueles ideais, em exclusão de outros”, sem deixar de acentuar que a Febrapsi, como uma entidade de classe, “tem todo direito, e mesmo dever democrático, de acolher diversidade de pensamentos e posicionamentos sócio-político-culturais”, reconhecendo o Observatório Psicanalítico como espaço privilegiado para a expressão do psicanalista no exercício de sua cidadania política.
A vocação democrática do OP se manifesta, assim, no debate que se segue justamente a respeito do formato de nossa formação, trazido por Ricardo Trinca (SPBSP) no texto “Inquietações políticas na formação”, OP 349/2022, quando nos provoca com sua aguda questão: “o silêncio político nos institutos de formação não estaria criando uma ausência de pensamento crítico dos analistas em formação na sua relação com a sociedade (com a anuência dos analistas mais experientes) e abrindo espaço para a infiltração de personalidades autoritárias nos institutos?” […] “Não seria necessário nos afirmarmos como anti-intolerantes, como anti-fascistas e, portanto, afastados de uma ideia de neutralidade?” O autor, que levanta o risco de termos um ambiente alienado políticamente e intolerante às diferenças, algo incompatível com a ética psicanalítica, nos coloca o desafio de buscar caminhos que abram esta reflexão nos institutos: “…uma resposta sobre a análise pessoal como o instrumento que garante mudanças em personalidades autoritárias não é uma resposta satisfatória, pois aspectos perversos associados à política e à desconsideração sobre a vida – pois é disso que se trata fundamentalmente – podem se conservar intratáveis. Não seria mais prudente ter a política em amplo sentido (não política partidária) como um critério de escolha dos candidatos e como parte integrante da formação desses mesmos candidatos?” Provocação que teve ampla repercussão. Acreditamos, em nossa curadoria, que o debate sobre o exercício da cidadania e sobre o ser político que nela está intrínseco seja importante nas diferentes esferas de formação – seja ela psicanalítica ou na educação de nossas escolas e faculdades –, fundamental como antídoto às repetições de lideranças perversas como as destacadas na introdução deste editorial.
Em “As ‘cicatrizes da desrazão’ nos bastidores da Globonews”, OP 350/2022, Mônica do Amaral (SBPSP) tece importante crítica à jornalista Eliane Cantanhêde por ocasião de sua crítica, no jornal Globonews, à participação ativa e assertiva de Janja como futura primeira dama. Seu ensaio traz a intersecção das várias camadas de nossos preconceitos e, novamente, de nosso autoritarismo: “Mas se Eliane Cantanhêde se diz feminista, como podemos classificar sua fala de misógina e machista? Acontece que seu feminismo é branco e de classe (abastada e de elite, no caso). Angela Davis já dizia em seu livro ‘Mulheres, raça e classe’ (2016), que as opressões de classe e de gênero não eram as mesmas para a mulher negra, o que conferia outro caráter ao feminismo negro, apontando a importância de se atentar para a interseccionalidade das opressões. Nessa mesma linha, poderíamos dizer que o feminismo de Cantanhêde vai até certo ponto, ou seja, que defenda os direitos à participação da vida pública de uma mulher branca, rica e articulada, como Ruth, mas jamais de uma socióloga como Janja…ela que se ponha no seu lugar! Onde? Na alcova e na cozinha?” Mônica desenvolve com propriedade o quanto a inveja, somada à estrutura escravocrata e autoritária de nossa sociedade, fundamenta atitudes como a da jornalista, e conclui: “…mesmo aqueles que não pertencem à esfera de poder dos caciques que dominam a política brasileira, assumem, muitas vezes, atitudes mandonistas, autoritárias, de natureza patriarcal e discriminatória. E os profissionais da grande mídia acabam recorrendo, muitas vezes, ao poder que têm de estar em evidência, com o microfone na mão, para proferir impropérios, como se fossem verdades absolutas, como o fez Cantanhêde, movida, não pelo espírito esclarecido de querer separar as dimensões pública e privada do exercício do poder, mas para encobrir inverdades subjetivas…na maioria das vezes, não admitidas, como o desejo de querer todo o holofote para si, sem suportar qualquer partilha do palco, ainda mais com uma mulher que não pertença à chamada ‘elite brasileira'”. Aproveitamos para dar as boas-vindas à Janja, celebrando a contribuição que sua parceria com o presidente eleito promete nos trazer.
Inveja, ódio, destrutividade, perversidade, negação têm sido personagens frequentes em nosso cenário político, inevitáveis nos temas de nossas rodas de conversa, nas linhas de nossos textos. Mas o que nos faz suportar as intempéries e as angústias destes tempos, o que nos mantém acesos na esperança por mudanças, algumas já anunciadas para o ano que se aproxima? Sim, é a nossa capacidade amorosa, a nossa pulsão de vida, nosso elo a azeitar a corrente de nossos vínculos e dos laços sociais, da força de nossa história e da busca pela sua verdade e memória.
O amor está presente e nos emociona no belo ensaio de Rafaela Degani (SBPdePA), OP 351/2022, “A minha avó da Praça de Maio”, onde ela presta homenagem à sua avó Sara que, tendo partido no mesmo dia de Hebe de Bonafini, compartilhou com esta a dor pelo desaparecimento de seu filho por motivo de perseguição política. E Rafaela compartilha generosamente, em sua escrita, as marcas deixadas por uma morte sem corpo, cravadas na memória de uma relação especialmente afetiva com sua avó: “Demorei anos para entender o peso da história da minha avó e como isso deságua em mim. Só entendi com a ajuda da psicanálise, esse espaço privilegiado de escuta. Colocar em palavras a própria história, se apropriar das heranças e criar uma narrativa assimilável, interrompendo a angústia sem nome, nem que seja até a próxima sessão. É um trabalho sem fim, a palavra nunca alcança, mas nessa brincadeira vamos transformando a vida numa ficção capaz de ser contada e passada adiante. Não vou até a Praça de Maio toda quinta-feira, mas há 20 anos frequento insistentemente os divãs de analistas, provavelmente em busca de memória, justiça e verdade. A minha verdade, que invento como posso”. É na resistência dessas mulheres que Rafaela se inspira e não desiste, é na força da psicanálise para criar palavras próprias que ela segue se reescrevendo, seja no divã ou em seus livros. Ler o seu testemunho nos encoraja a buscar também o nosso próprio texto.
Outra homenagem amorosa que temos neste mês é a de Anette Blaya Luz (SPPA), em “A presença de Carlos Gari Faria”, OP 353/2022, em que ela nos lembra, carinhosamente, da falta que sentiremos do colega, morto em 23 de novembro, aos 84 anos: “Seus pacientes, supervisionandos e alunos perdem um analista, supervisor e professor talentoso e profundo; a SPPA e a FEBRAPSI um leal e devotado participante e líder, eu um amigo e sua família um esposo, pai e avô amoroso e dedicado”. Suas palavras aquecem os que com ele conviveram e, emocionados, também se despedem do amigo.
Em tempos de Copa do Mundo nosso OP também entrou em campo e colocou uma bola na rede com o ensaio de Julio Hirschhorn Gheller, “Os brasileiros e a Copa do Qatar”, OP 352/2022. Sem esquecer da paixão que o futebol é capaz de mobilizar, ou da alienação política da maioria de nossos jogadores, Julio recorda o seu uso para fins políticos, quando movimentou o “noventa milhões em ação…”, ou no atual campeonato, quando traz a inserção e o atravessamento dos acontecimentos sociais e políticos para o gramado com a sensibilidade de manifestações como a destacada por ele: “Como contraponto ao comportamento omisso da maioria dos atletas brasileiros cito o jogo entre Inglaterra e Irã. Os iranianos não cantaram o hino, em protesto contra a repressão com que são tratadas as mulheres no seu país. Simultaneamente, nas arquibancadas do estádio, apareciam camisetas e uma bandeira com os dizeres: “Women Life Freedom”. Os ingleses, por sua vez, ficaram de joelhos antes do apito inicial, em manifestação comumente antirracista, mas que, desta vez, visava defender os direitos dos indivíduos LGBTQIAP+. Diga-se de passagem, que braçadeiras com as cores do arco-íris foram vetadas pela Fifa. Deste modo, a braçadeira do capitão inglês teve sua inscrição alterada para: “No Discrimination”. Diante do nítido contraste com os colegas estrangeiros, torna-se evidente – pelo menos por ora – a falta de ousadia de nossos futebolistas no sentido de participar, minimamente que seja, do debate público”. Aqui, a importância de exercer nossa voz política é novamente convocada.
Julio encerra com a esperança de ver nossa polarização esmaecida pelo tom de coesão que costuma estar presente no esporte. Juntamo-nos a ele nessa torcida, embora da arquibancada de onde observamos o pedido espúrio e anti-democrático de “prorrogação” do jogo eleitoral por parte dos derrotados não vemos, até agora, sinais de aceitação do placar.
No país onde Roda Viva tem sua autoria questionada e Gilberto Gil é desrespeitado por fanáticos bolsonaristas, vemos que não tem sido nada fácil manter o jogo nas quatro linhas do campo democrático. Os tiros do jovem neonazista que vitimaram quatro pessoas, que na verdade tiveram como alvo a alteridade e a diferença, é exemplo de que ainda temos grandes obstáculos em nossa luta pelo fortalecimento dos valores civilizatórios. Não desistiremos.
Segue o jogo…
Não deixem de nos acompanhar em nossas redes sociais. Neste mês tivemos, além dos textos inéditos acima, as seguintes publicações em nossa página do Instagram, pela equipe de colegas da SBPdePA: Gabriela Seben, Ian Nathashe e Rafaela Degan.
“11° Bienal do Mercosul: alerta a uma realidade incômoda”, de Paulo Henrique Favalli (SPPA);
“Os caminhoneiroa e o risco de alucinação coletiva”, de Ricardo Trinca (SBPSP);
“Os sertões e as guerras de narrativas”, de Cristiana Tiradentes Boaventura (SBPSP) e
“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, de Raya Angel Zonana (SBPSP).
Nosso podcast Mirante, sob o título “Utopia, Democracia e o Direito à Cidade” e a batuta de Beth Mori como entrevistadora, recebeu o arquiteto Carlos Henrique Lima e a psicanalista Lúcia Palazzo para uma troca rica sobre a relação entre o estar na cidade contemporânea e a nossa subjetividade. O roteiro é da Curadoria do OP e a produção e trabalhos técnicos do jornalista Rodrigo Txotxa.
Um abraço a todos, da Equipe de Curadoria do OP:
Ana Valeska Maia (SPFor)
Beth Mori (SPBsb)
Daniela Boianovsky (SPBsb)
Rafaela Degani (SBPdePA)
Renata Zambonelli (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Editorial
Palavras-Chave: Observatório Psicanalítico, Psicanálise, Racismo, Machismo, Copa do Mundo
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