Queridos colegas, bom dia,
Nosso editorial já estava pronto quando fomos surpreendidas pela notícia da tragédia ocorrida na creche em Blumenau. Como todos vocês, estamos comovidas, e lamentamos que parte da população brasileira esteja tão adoecida e contaminada pelo discurso de ódio propagado pela extrema D em nosso país e no mundo.
Forte abraço
Equipe de Curadoria
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 35 – Março de 2023
A ciência nos fala da distância de milhões de anos-luz entre nós e as estrelas. Mas o que é a distância?
Certa vez, em uma das cartas ao irmão Theo, Vincent Van Gogh escreveu: “não tenho certeza de nada, mas a visão das estrelas me faz sonhar”. Para o artista que pintou noites estreladas, a abóbada celeste foi um estímulo para a imaginação, a esperança, o sonho, a arte.
É antigo, na humanidade, o gesto de olhar para cima e indagar sobre os segredos do espaço. Culturas longínquas incluíram planetas e estrelas em narrativas míticas. Dedicaram aos astros templos, ritos e sacrifícios. Calendários tiveram por base os ciclos solares e lunares. Se as perguntas sobre os enigmas no universo estão em nossos começos, é inquietante pensar que algum passo que leve à compreensão científica sobre a infância das galáxias é acompanhado da quase total ignorância sobre as cosmovisões de culturas ancestrais em nosso próprio país.
Enquanto narrativas como “A queda do céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, conduzem ao universo poético Yanomami e restituem o lugar central do sonho, por outro lado alertam sobre a ambição desenfreada dos brancos pelo ouro. Não obstante, as notícias do Brasil e do mundo nessa semana corroboram esse aspecto mundano guiado pela cobiça ao explicitarem os escândalos envolvendo os ex-presidentes dos Estados Unidos e do Brasil. Aqui em nossas terras, esperamos que as joias recebidas pelo governo anterior e trazidas ao país de forma ilícita sejam restituídas ao patrimônio público, e que tenham as respectivas condutas criminosas a devida apuração e responsabilização.
Falando em universo, no mês de março de 2023, no OP, recebemos textos que nos levaram a novas perguntas sobre as nossas origens.
Denise Vasques (SBPSP) nos traz notícias do desconhecido em “O Telescópio de Freud e o James Webb” (OP-384/2023). A autora tece uma instigante relação entre as imagens reveladas pelo super telescópio e o pensamento de Freud. Aparelho psíquico e telescópio formam imagens, que são criações, reedições de estados de infância. Tomando como base o que o telescópio exibe, Denise Vasques fala de um desejo: “conhecer nossas origens e a origem do que é hoje o lugar em que habitamos. Somos levados a dizer, então, que nós, por meio do James Webb, estamos criando a história da infância do nosso Universo”.
Se o sol é o astro-rei, após o fulgor de seu brilho pode advir um período de sombras. Um rendilhado afetivo motivou a escrita do texto “Meu pai, esse desconhecido” (OP-383/2023), de Ana Valeska Maia Magalhães (SPFOR). A escrita é elaborada no fluxo de reminiscências, de imagens em movimento que conduzem a rastros que se unem a outros resquícios, resultando em novas narrativas. A surpresa diante de uma fotografia do pai, as perguntas sem respostas no filme “Aftersun”, os arquivos revisitados das infâncias. Se a estrada da vida nos ensina que teremos mais dúvidas do que certezas, a psicanálise e a arte mostram que é possível transformar feridas em linhas luminosas e com elas fazer caminho.
Também em março continuamos a receber ensaios dos candidatos ao Board da IPA.
Sérgio Eduardo Nick (SBPRJ), candidato a representação latino-americana no Board da IPA escreveu “Sobre traumas e sua transmissão” (OP-380/2023). Ao reproduzir um delicado e doloroso diálogo entre avó e neta, evidencia a aparição e a acolhida dos sentimentos de tristeza e abandono vivenciados pela criança e as associações feitas pela avó ao rememorar as trajetórias geracionais de sua família. O autor destaca aspectos da transmissão transgeracional, do que não foi digerido psiquicamente, do que ficou em um vazio, sem explicação. Diz ele: “(…) memórias habitam o universo imaginário de uma família como algo não dizível, rememorável apenas através de atos ou sintomas psíquicos.”
“Risos em tempos sombrios. Entre a dor, o amor e a esperança” (OP-375/2023), é o título do ensaio de Maria Cecília Pereira da Silva (SBPSP) também candidata a representante latino-americana ao Board. A autora destaca as primeiras palavras de uma ucraniana atendida na Clínica Transcultural da SBPSP: “Toda noite penso como quero voltar para casa, mas as bombas não cessam.” A partilha de experiência conta a história dessa paciente que fugiu da guerra e foi mãe no exílio. Situações traumáticas deixam marcas e a autora ressalta que é uma função do psicanalista favorecer a elaboração das cicatrizes, procurando impedir a sua transmissão para as futuras gerações.
Na véspera do Dia Internacional das Mulheres, publicamos o ensaio de Lina Schlachter Castro (SPFOR), intitulado “A mulher e o feto” (OP-376/2023). A partir do livro “O Acontecimento”, da francesa Annie Ernaux, Lina destaca o que a escritora enfrentou em 1963 ao realizar um aborto clandestino, relacionando a narrativa da vencedora do Nobel de Literatura de 2022 aos “acontecimentos” que impactam jovens brasileiras nos dias atuais, inclusive meninas de 11, 12 anos de idade. Segundo a autora, a lei antiaborto no Brasil permanece quase inalterada há mais de 80 anos. E então, pergunta quando no Brasil essa discussão será levada a sério, inclusive entre nós, psicanalistas: “Por que, afinal, temos tão poucos trabalhos sobre o assunto?”
Se o aborto é uma realidade frequente e repleta de não ditos em nossa sociedade, na arte o tema encontrou uma materialização contundente na série “Abortos”, da pintora portuguesa falecida no ano passado, Paula Rego, uma imagem escolhida por Lina para acompanhar seu ensaio. As pinturas e gravuras da série mostram mulheres em ambientes domésticos e contextos insalubres. Os corpos nas imagens nos olham de volta, evidenciam a dor física e emocional que permeia o cerne dessas histórias, afetando e colocando em perigo, em maior intensidade, as mulheres desprovidas de recursos financeiros.
Foi a imagem de um corpo negro, em aguada de café e terra sobre papel, do artista Luiz Lira, que a psicanalista Magda Khouri (SBPSP), trouxe para acompanhar seu texto “Preconceito, discriminação, racismo” (OP-382/2023). Café e terra, elementos selecionados pelo artista, estabelecem uma conexão com as chagas da exploração histórica dos negros no Brasil, pois “há para os negros algo particular: uma cor e um corpo marcados historicamente.” Magda Khouri faz uma diferenciação entre preconceito, discriminação e racismo. Por esse rumo, para os brancos, o caminho de um compromisso antirrascista na clínica e em qualquer seara da vida, só se efetivará através da percepção dos privilégios da branquitude. “Sem tocar no campo da branquitude, nada acontecerá”, diz a autora.
É possível contar uma História do Brasil? A antropóloga, professora, curadora e historiadora Lilia Schwarcz costuma falar em histórias, no plural. Ela foi nossa convidada para o 10°programa da 3ª temporada do podcast Mirante, e teve uma fértil conversa com o querido colega Claudio Eizirik, da SPPA, sobre o tema “Democracia e Autoritarismo.” Na dinâmica das histórias não contadas, Lília ressalta no programa que “o nosso presente está cheio de passado”, e diz: “o grande trauma é o do racismo”. Cláudio, por sua vez, ressalta o trabalho psicanalítico, que propicia o entrar em contato com nossas versões do que passou, recontando nossa história. Nós, da equipe de curadoria, ficamos felizes com o resultado do programa e convidamos quem agora nos lê para desfrutarem da escuta do Mirante.
Outro ponto debatido pelos convidados do Mirante foi a importância da educação. E esse foi o tema problematizado por Magdalena Filgueira, candidata a representante da América Latina ao Board da IPA e pertencente à Associação Psicanalítica do Uruguai (APU), em “A metanovela sociopolítica do Uruguai” (OP-379/2023). A autora pergunta “por que não foi possível transformar – como foi argumentado que seria feito – o Sistema Nacional de Educação Pública, na década de 2005 a 2015, no Uruguai, quando a Frente Amplio estava governando?” Para nós, do Brasil, foi uma oportunidade de acompanharmos, através do texto de Magdalena, um pouco dos desafios sociopolíticos na América Latina, e como psicanalistas pensarmos acerca de sintomas, obstáculos e repetições pela lente fornecida pela autora.
Muito nos emociona a ampliação das trocas propiciadas pelo Observatório Psicanalítico. Nesse março intenso recebemos textos dos dois candidatos à presidência da IPA.
Heribert Blass, da Associação Psicanalítica Alemã (DPV), nos escreveu o ensaio: “O aumento da disforia de gênero o dos desejos transgêneros em nossas sociedades” (OP – 378/2023). A densidade de seu escrito nos convoca a pensar sobre “o forte aumento de desconforto com o próprio sexo biológico, e um aumento do desejo de mudar de sexo, especialmente entre adolescentes, e já também entre crianças”, bem como a forma adequada de lidar com essas mudanças em nossa atividade clínica. Heribert Blass, que tem experiência com atendimento de crianças e adolescentes em seu ensaio nos oferta algumas questões, dando destaque, entre outros pontos, à elaboração de fantasias relacionadas ao gênero dentro da relação analítica.
Bernard Chervet, da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), no texto “Como está evoluindo a psicanálise? O enigma da libido” (OP-381/2023), indaga sobre o que outros campos culturais podem trazer como contribuição à psicanálise. Partidário de uma perspectiva complexa, ele nos conta a criação de uma unidade de pesquisa dentro da Sociedade de Paris, onde são recebidos especialistas de outros campos: ciência, arte, literatura, história, sociologia, política, etc. Bernard Chervet ressalta que a pluralidade de outras vozes e a possibilidade de fazer desvios são frutíferos ao desenvolvimento da vida mental. Como um dos elementos principais de seu texto está o enigma que viceja em nossa ciência psicanalítica: o enigma da libido.
E é com a força do amor que nos aproximamos da conclusão do editorial com o texto-convite de Ney Marinho (SBPRJ): “Um convite à Bahia, em “Você já foi à Bahia? … Não!? Então, vá” (OP-377/2023). Ney nos chama para o 5º Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa, com o tema “Escravidão e Liberdade – Travessias do corpo e da alma”, que ocorrerá em 27, 28, 29 de abril de 2023 em Salvador. Seu texto nos conduz às lembranças dos Congressos que aconteceram em Lisboa (2016) e Cabo Verde (2018). Neste ano é a vez do Brasil recepcionar os colegas na celebração da palavra, de uma psicanálise que se irmana nos vínculos de uma língua comum, em culturas diversas. Em seu texto Ney nos diz que “a colonização do pensamento pode ser a pior das escravizações! Algo mais deletério que o racismo, pois, o alimenta, da mesma forma que o obscurantismo reacionário, que tenta nos convencer que “… não adianta, foi sempre assim …”
O OP estará presente no Congresso, levando notícias, contando histórias, questionando os acontecimentos do Brasil e do mundo, acreditando que é possível mudar e imaginar novas travessias.
No movimento de relembrar nossos ensaios nas redes sociais o nosso #tbt contou com os seguintes ensaios: “UBUNTU – Eu sou porque nós somos: Projeto de acessibilidade a negros e negras à formação analítica na SBPdePA”, de Eliane Nogueira (OP-248/2021) e “O que o retorno da “cura gay” e o fechamento da exposição dizem sobre nós?” de Juliana Lang Lima, da SBPdePA (OP-22/2017).
Entre tantas novidades do mês que passou celebramos a chegada da colega Camila Reinert, da SBPdePA, que estará com Gabriela Seben cuidando de nosso Instagram (@observatorio_psicanalitico) nesse importante trabalho de criação dos cards e de chamada à leitura dos ensaios publicados pelo Observatório Psicanalítico e episódios do Mirante. Agradecemos ao tempo que Ian Favero Nathasje (SBPdePA) esteve conosco e pelo tanto que contribuiu para o crescimento do OP. Desejamos ao Ian boa sorte em seus novos projetos!
Assim como na pintura estrelada de Van Gogh, nas imagens do telescópio James Webb um simbolismo atávico vibra. A potência da imagem diz das imagens em nós. É a nossa gênese poética: pensamos por imagens, somos sonhadores. Carlos Drummond de Andrade no poema “O homem, as viagens” nos leva a um percurso no qual a humanidade chateia-se na terra. Percorre a lua, o sol, todos os planetas, estrelas e galáxias, sempre colonizando, civilizando, humanizando tudo o que encontra pela frente. A humanidade esquece-se, porém, que a dificílima, dangerosíssima viagem de cada um é de si a si mesmo, e que é na perene e insuspeitada alegria de conviver que estará o que na verdade sempre se buscou.
Estaremos equipados?
Um forte abraço da equipe de curadoria,
Beth Mori (SPBSB), Ana Valeska Maia (SPFOR), Daniela Boianovsky (SBPSB), Gabriela Seben (SBPdePA) e Renata Zambonelli (SBPSP)
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Noite Estrelada Sobre o Ródano, 1888, 72cm x 92 cm, Vincent Van Gogh.
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Psicanálise, candidatos IPA, universo, imagem.
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