Observatório Psicanalítico – Editorial maio/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo. 

Sódepois 37

Maio de 2023

Em exposição no MAB, Museu de Arte de Brasília, podemos ver a litografia do menino Juri, 12 anos, uma das crianças indígenas que a dupla alemã de cientistas Spix e Martius leva a Munique após expedição de 1817 ao Brasil, cuja missão era a coleta de animais, plantas e minerais. O garoto é exposto em um dos zoológicos humanos que, populares na Europa do séc. XIX, serviam para saciar a curiosidade do público e reafirmar a suposta superioridade branca. Juri não resiste, morre 06 meses depois. Do grupo das oito crianças raptadas, seis morreram antes de chegar ao destino. A indígena Inê-e, sobrevivente ao lado de Juri, também morre em poucos meses.

Brasil colônia, 1693: calabouços de medidas claustrofóbicas são construídos para aprisionar escravos que deveriam ser punidos pelo Estado com 100, 200 ou mais chibatadas, sem que seus senhores precisassem apresentar provas de suas supostas infrações. Bastava que pagassem pelo serviço da punição encomendada, que agora estava sob jurisdição exclusiva do Estado. Boa parte deles não sobrevivia.

Em Santa Catarina, até os anos de 1950, o estado pagava caçadores de indígenas que só receberiam seu pagamento mediante a entrega do par de orelhas que retiravam de cada indígena assassinado.

Cenas de nossas raízes. Retratos de nossa voracidade. Feridas abertas de uma história tantas vezes negada pelo etos de uma sociedade que se estruturou pela colonização escravocrata, autoritária e racista, que seguem latejando nas veias de nosso país. De que forma podemos descrever a dor de nossos povos originários, usurpados de suas terras, de seu direito à própria cultura, à vida, agora mais ameaçados do que nunca com a possível execução do Marco Temporal? Como entender a pele açoitada do negro, marcada pela força que o arrancou de suas raízes e o despejou na crueldade e na insensatez que o escravizou – e que seguiu desumanizando-o mesmo após o impensável período de mais de três séculos de escravidão? Como jogar luz no ponto cego que nega a existência do outro, o direito à dignidade humana, que faz nossa recusa à realidade transbordar na dúvida da própria sobrevivência de nosso planeta?

Movidas pela necessidade de pensar caminhos que possam acolher algumas de nossas angústias, iniciamos a produção do mês de maio com mais um episódio da temporada “Democracia” de nosso podcast Mirante, disponível em todas as plataformas. A conversa com o filósofo Moyses Pinto Neto e a psicanalista Marilsa Taffarel (SBPSP), sob o título “Cosmopolítica, um futuro para o planeta?”, é um convite a debruçar o olhar cuidadoso para nossas formas de estar no mundo, e nela podemos ouvir que a visão contemporânea de cosmopolítica destaca a necessidade de se pensar uma política cósmica, não mais antropocentrada, em que novos agentes, como a natureza e os animais, são considerados na composição do fazer político. O outro não humano deixa de ser considerado apenas como recurso, é respeitado como parte do cosmos. O cosmograma indígena é um bom exemplo desse convívio onde não haveria a marcação da hierarquia humana. Uma conversa que nos deixou desejosas por sua continuidade e melhor compreensão de seu pensamento, especialmente diante da premente resistência que devemos ser capazes de oferecer à nossa cultura histórica de ganância e extrativismo sobre as terras indígenas, sobre os corpos negros, sobre aquele que usamos para satisfazer nossa agressividade, para “explorar sua capacidade de trabalho sem compensação…apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo” (Freud, 1930, p.133) e apreender, de uma vez por todas, a sabedoria que os povos originários podem nos ensinar antes que nosso mundo se acabe.

Na data em que se celebra a lei da suposta abolição da escravatura no Brasil, publicamos, de Ignácio A. Paim Filho (SBPdePA), o ensaio (OP 395/2023) “Comitê da IPA para as questões raciais: Compromisso de manter o poder hegemônico do colonizador?”, libelo que traz a intersecção de nosso racismo estrutural e nossa condição de colônia na crítica à necessidade de se dominar a língua inglesa para fazer parte de tal comitê: “…montamos um comitê para trabalhar o racismo, a discriminação e o preconceito e começamos com – racismo, discriminação e preconceito – a reativação da hierarquia dos povos, elemento central no processo de racialização que o branco europeu, protótipo do civilizado, efetivou…”. Paim convoca-nos a resistir à hegemonia colonizadora, aponta para a urgência da escuta, através das ações reparadoras, da voz dos negros e indígenas em nossa Associação Psicanalítica, para que possamos nos engajar na “luta por uma psicanálise antirracista…, pelo nascimento de um mundo humano, isto é, por um mundo de reconhecimento recíproco”, onde “a língua investida pelo povo negro, em seu transcurso diaspórico, reafirma, entre sonhos e paixões, a máxima que diz: nada sobre nós, sem nós”! De sua dor, podemos ver o punho estendido com a força de quem não quer e não vai se calar.

Os ventos da provocação de Paim alcançam os rincões de Córdoba e de lá nos trazem o belo ensaio de Mariano Horenstein (APC), “Notícias de nosso pequeno mundo” (OP 400/2023), em que o autor compartilha seu testemunho como representante das vozes da América Latina, agora ainda mais tocado pela necessidade de nos apropriarmos daquilo que também é nosso e nos libertarmos de uma “mentalidade colonial”: “Tendemos a perder de vista o fato de que nós, latino-americanos, somos, como membros, também proprietários da IPA”. E ressoa a colocação de Paim ao nos trazer a sua reivindicação, na última reunião do Conselho em Belgrado, de que a língua portuguesa fosse reconhecida, dado o seu número de analistas, como a quinta língua oficial da IPA. Reivindicação acolhida, revelou-nos ainda, cenas dos bastidores em que a discussão sobre a psicanálise na África, prevista na pauta da reunião, teria sido esquecida. Percebido o ato falho, convoca os parceiros a recuperarem o tema, o que resultou na criação de um grupo de pesquisa. Mas é de seu lugar de estrangeiro, tanto em relação ao português como à língua inglesa, que Mariano nos oferece sua preciosa reflexão, ressaltando a potência política de uma língua minoritária, sua capacidade de produção de sentido e, ainda, sua função como portadora do novo, da desterritorialização. “Trata-se de lutar não contra o inglês, mas contra a própria ideia de língua franca, seja ela grega, inglesa ou mandarim, e assumir que nossa língua comum é a da tradução”, numa “operação em que falar em uma língua como a nossa – e sabemos que uma língua é também uma forma de pensar e dizer a psicanálise – mina a língua do outro, a descompleta”. E da sala de reuniões, podemos dizer que Mariano acaba por nos levar à sala de análise, onde o exercício de se tentar traduzir a linguagem do outro, do estranho, também encontra o paradoxo que une incompletude e poder de mudança.

Do grito que não se cala, da elaboração constante que ocorre em nosso OP, recebemos o ensaio “Reflexões pós 5º CPLP – Salvador/abril 2023” (OP 399/2023), de autoria conjunta da Comissão Ubuntu (SBPdePA) e Coordenação do Grupo de Estudos Colonialismo, Racismo e Desigualdade (SBPdePA). Ecos da intensidade vivida pelos participantes no Congresso ressoam e seguem nos provocando. Os autores aceitam a convocação e, partindo de sua experiência com o grupo de estudos e com a implementação de ações afirmativas, partilham suas observações: “…no 5º CPLP eram colegas brancos e negros que estavam juntos por três dias, e os temas do racismo e do privilégio branco eram previsíveis e esperados…quando a dor visceral de colegas negros emerge em pranto ou em falas que podem soar hostis, seria importante se pudéssemos nos perguntar o que fazer, como estar junto, como seguirmos juntos? Somos desafiados a lidar com o impacto sem desejar seu silenciamento, reconhecendo muitas vezes nosso despreparo para questões tão novas… Como psicanalistas, somos convocados, desde Freud, a pensar e fazer trabalhar esse mal-estar e os conflitos”. Juntamo-nos a eles na esperança de que “as vivências do 5º CPLP possam nos levar a avanços”, de que a dor e o sofrimento “que sempre estiveram fora de nossos consultórios e dos congressos possam finalmente adentrar”.

Ney Marinho (SBPRJ – RIO II) empresta-nos sua sensibilidade como porta-voz de nossa indignação diante de mais um caso dentre as “frequentes expressões de racismo contra o jogador brasileiro Vinicius Junior”, integrante do time espanhol Real Madrid. Em “TRIBUTO A VINICIUS JR.” (OP 398/2023), presta sua homenagem ao jogador e lembra-nos que “esta luta é também pela honra da Espanha. Em sua terra, muitos democratas – quarenta deles brasileiros (não foram mais, pois muitos estavam presos pela ditadura de então) …combateram o fascismo, sabedores que a Guerra Civil (1936-39) era a última fronteira contra a catástrofe da II Guerra Mundial”. A eles, Vini Jr. se junta com sua coragem e determinação, conforme declaração que podemos testemunhar no vídeo compartilhado por Ney: “enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho nos olhos, haverá guerra”! Sim, uma guerra para ser travada com todas as nossas forças, em qualquer canto do planeta.

Premiado com o 1º lugar pela IPA na Comunidade e no Mundo, na categoria Saúde, o projeto SOS Brasil é apresentado por suas coordenadoras Susana Muskat e Raya Angel Zonana (SBPSP) no texto “Projeto ‘SOS Brasil’: a psicanálise e o resgate das clínicas públicas de Freud” (OP 397/2023). Dando sequência à semente lançada por Alicia Beatriz Dorado de Lisondo no projeto SOS Manaus desenvolvido durante a pandemia, sensível à intensa desigualdade econômica e social que agrava a precariedade de nossa população, o projeto SOS Brasil, que envolve mais de 60 psicanalistas e profissionais da saúde, visou acolher aqueles que têm “pouco acesso aos dispositivos de saúde, especialmente os de saúde mental. Uma população com menos recursos para lidar com as dores dos vários lutos que vivenciavam: mortes, pobreza, fome, falta de escolas para as crianças e adolescentes”. A dor que ali começa a ter voz revela “uma espessa e antiga camada de um mal-estar que permeava a vida desta população”, uma estrutura possível para dar continuidade a essa escuta, marcada pelo limite de 8 sessões, é oferecida e revela-se fonte de grande aprendizado e inúmeros questionamentos. Encontros quinzenais, e também mensais, para supervisão e trocas de experiência, trazem férteis discussões, com uma pergunta que ainda se sustenta: “será esse tipo de trabalho um ato psicanalítico?”, já que se apresenta “para muito além do tradicional consultório com seu divã?” Uma conclusão é depreendida dessa vivência: “A escuta psicanalítica é um ato político, um ato de mudança. Como em um jogo de dominó, cada sujeito que se dispõe a ser escutado ‘carrega’ outros com os quais se enlaça no espaço social que habita”. Cumprimentamos o projeto pela potência de sua atuação.

Perdemos nossa grande Rita Lee no dia 09/05/23. Perdemos? Talvez o mais adequado seja lembrar do quanto ganhamos com seu talento e força artística, e nada melhor para isso do que termos a leitura de dois ensaios neste mês reverenciando o impacto que a experiência estética desta artista nos causou.

Em “As diversas faces de Rita Lee” (OP 394/2023), Daniel Senos (SBPRJ) nos diz: “tantas Ritas conviveram entre nós em diversos momentos de nossas vidas que é impossível dimensionar de maneira justa o impacto que a sua obra teve não apenas na cultura brasileira, mas também no cenário musical mundial”. Lembra-nos de sua luta feminista, de suas experimentações de vanguarda enfrentando, inclusive, o período da Ditadura. Nestes tempos tão sombrios, recupera o bálsamo que a arte é capaz de nos trazer: “Marcada sempre pela irreverência e espontaneidade, …Rita segue sendo, para mim, um infindável espectro de possibilidades e um lembrete de que a luta diária necessita, além de coragem e ousadia, boas doses de bom-humor”.

Júlio Hirschhorn Gheller (SBPSP), no ensaio “No dia em que Rita Lee morreu eu quase chorei” (OP 396/2023), de forma intimista nos traz sua experiência de se render à obra da artista e a emoção que sua morte lhe causou. Compartilhamos de sua tristeza e inconformidade diante da “sensação de como o destino pode ser injusto”: enquanto Rita, “aos 75 anos, nos deixa órfãos de sua inteligência e verve apimentada, o contumaz misógino e machista de 76 anos de idade… continua a representar a extrema-direita americana”, referindo-se a Donald Trump, que apareceu em entrevista, esbanjando saúde, no dia seguinte. Leva-nos a cantarolar algumas de suas músicas, a lembrar da voz de Rita tocando em nossas caixas de som, e com ele concordamos quando afirma: “Pode-se dizer que ela não economizou nada, viveu intensamente. Azar nosso, que não teremos mais a oportunidade de desfrutar do talento da rainha brasileira do rock”.

Em nossa página do Instagram, além das publicações inéditas, nosso #tbt trouxe “A fumaça do fogo pantaneiro” (OP 199/2020), de Paulo Marcio Bacha (SPMS, SPRJ) e “Por que não psicanálise?” (OP 31/2017) de Magda Khouri (SBPSP). Nas terças culturais, relembramos “A pele de Moise pelo avesso” (OP 294/2022), de Vanessa Figueiredo Corrêa (SBPSP e GEP Rio Preto e Região) e Gizela Turkiewicz (SBPSP).

Convidamos a todos a se debruçarem sobre os textos publicados e a comentá-los em nossas redes sociais.

Um forte abraço da equipe de curadoria,

Beth Mori (SPBSB), Ana Valeska Maia (SPFOR), Daniela Boianovsky (SBPSB), Gabriela Seben (SBPdePA) e Renata Zambonelli (SBPSP)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Imagem: Retrato de Juri, 1823, 69,8 x 50,7 cm. Litografia colorida de Carl Von Martius e Johann Baptiste von Spix. Integrante do acervo da Biblioteca Barbosa Rodrigues, do Jardim Botânico (Rio de Janeiro).

Categoria: Editorial

Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Colonialismo, Racismo, Violência, Rita Lee, Cultura 

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Categoria: Editoriais
Tags: Colonialismo | Cultura | observatorio psicanalitico | Racismo | Rita Lee | violência
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