Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
Sódepois 27
Julho/22
“Aquilo que mais o desanima, – ou melhor, que o assusta – é que há pouco tempo começou a olhar para a lua (…) como se fosse a única coisa que ele ainda poderia contemplar sem sentir um mal-estar. O sol? Impossível apreciar seu calor sem pensar imediatamente no aquecimento global. As árvores que os ventos agitam? O medo de vê-las dessecar ou serem cortadas por uma serra o atormenta. Até mesmo pela água que cai das nuvens ele tem a desagradável impressão de se sentir responsável: ‘você sabe muito bem que, em breve, a água vai faltar em toda parte!’. Alegrar-se contemplando uma paisagem? Ele nem se atreve: toda essa poluição é culpa nossa; e se alguém ainda se encanta com os campos de trigos dourados, é porque se esqueceu de que as papoulas desapareceram. (…) Definitivamente, ele só consegue se acalmar lançando seu olhar para a lua: ao menos por sua circunferência e por suas fases ele não se sente de nenhum modo responsável; esse é o único espetáculo que lhe resta”.
O fragmento é de Bruno Latour, em seu livro de 2021, “Onde estou? – Lições do confinamento para uso dos terrestres”. Mas bem poderia ser o primeiro trecho de uma versão contemporânea do texto freudiano “Sobre a Transitoriedade”.
As queimadas e ondas de calor recorde que assolaram o verão europeu neste mês de julho nos alarmaram mais uma vez para a emergência climática. As geleiras dos polos derretem, descongelando cadáveres e micro-organismos potencialmente virulentos. Na África, a aridez se acentua, e, a despeito de esforços heroicos – como o projeto da Grande Muralha Verde, que tenta conter o processo de desertificação e expansão do Saara -, a população mais vulnerável perde subsistência e é jogada a situações ainda mais críticas, intensificando fluxos migratórios – inclusive por tráfico de pessoas, a que os Estados mais ricos respondem com o enrijecimento de fronteiras e aumento da militarização. No Brasil, a Amazônia – que, se preservada, teria as propriedades necessárias para adiar o fim do mundo – encolhe em ritmo acelerado. O garimpo e as outras atividades ilegais que invadem terras indígenas, violentam seus povos e derrubam a floresta se fortalecem com apoio explícito de Bolsonaro. Nossas instituições que poderiam fazer frente a tal destruição, corroídas por dentro pelo fascismo, são progressivamente sucateadas e silenciadas.
Em todo o planeta a ciência sinaliza que num horizonte não muito distante vamos nos deparar com a finitude incontornável de elementos essenciais à vida humana. Não por um acaso geológico, mas por efeito direto da ação humana. Embora ninguém até hoje tenha apertado o botão capaz de destruir o mundo subitamente, uma destruição desta magnitude vem acontecendo de forma insidiosa, associada ao gozo desenfreado do modo de vida capitalista que nos arrasta compulsivamente para realizar, pelos nossos próprios atos, o fim de um mundo habitável.
Em seu ensaio “34º Congresso FEPAL. Transitoriedades / Incertezas: Um convite e uma reflexão” (OP 329/2022), Samatha Nigri (SBPRJ) apelida o “nosso século fera XXI, de Século Dragão”, e aponta, com humor e temor, os desafios e o desamparo que nos atravessam. “Eu ousaria dizer que estamos mais próximos dos congressos pré e pós grandes guerras do que os que antecederam as gerações de analistas formados após a década de 50 do século XX.”
Samantha retoma Freud em 1918, marcado pela guerra, explicitando sua proposta de rever “…nossa posição na sociedade humana, para observar em que direções ela poderia se desenvolver”, e nos convida: “Desde esse marco na história, acompanhamos a reflexão psicanalítica sobre o que ameaça a existência da humanidade, a saber, para além da doença e dos fenômenos climáticos, a força da ruptura dos laços sociais e a incerteza do futuro…”
O que diria Freud diante da combinação colapso climático, iminência de novas pandemias, guerra e recrudescimento do fascismo? Em 1916, apesar da devastação causada pela Primeira Guerra, ele foi capaz de apostar nos retornos próprios ao tempo, na sucessão de gerações e na capacidade de reconstrução da humanidade. Como será possível para nós, psicanalistas de nosso tempo, sustentar a esperança no século Dragão?
As novas gerações têm expressado seu sofrimento diante do mundo hostil que as espera. Mas há também aqueles que nada sofrem, os chamados negacionistas climáticos, que na melhor das hipóteses creem em soluções mágicas advindas de saltos tecnológicos, ou, pior, apostam no abandono da Terra e na colonização de outros planetas, migração esta que certamente seria privilégio de poucos.
“Terra é um nome feminino”, escreve Latour. Eliane Brum, em “Banzeiro Okotó”, analisa os discursos de generais que idealizaram a construção da Transamazônica e afirma: “A escolha da palavra ‘virgem’ para se referir à floresta e a outros ecossistemas ainda não totalmente dominados por homens, como representação do fascínio por um corpo ‘natural’ e ‘selvagem’ e ‘intocado’ ilumina as relações de poder que levam a Amazônia para cada vez mais perto do ponto de não retorno. Este também pode ser compreendido como o ponto em que a floresta estará totalmente submetida e, portanto, destruída em sua potência criadora de vida”. Misturando-se à floresta, Brum descobre-se mulher, numa espécie de aprés-coup: “A violência é tão constituinte disso que chamamos ser uma mulher nisso que chamamos mundo como ossos, órgãos, sangue. (…) Compreendemos o que somos pela ameaça aos nossos corpos. Ser mulher é ser um corpo que não se sente seguro em lugar nenhum”.
No ensaio “Entre Sereias e Guerreiras: Representações sobre o Feminino” (OP 325/2022), Daniela Yglesias Prieto percorre algumas das múltiplas saídas subjetivas que as mulheres encontram diante da estrutura de dominação do patriarcado: “(…) são muitas vezes tratadas como se estivessem em prateleiras, disponíveis para serem agarradas, como se fossem objetos. Não são reconhecidas como sujeitos de direitos. São muitas vezes assediadas, têm o sossego perturbado como se estivessem disponíveis para serem desfrutadas. São perseguidas na ruas, assediadas no trabalho, agarradas em festas, como se estivessem disponíveis para serem caçadas, laçadas.”
Algumas vezes são estupradas durante o parto. Como poderia dizer Samantha Nigri, parece uma cena de filme B bizarro, mas é realidade. Um grupo de enfermeiras do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, no RJ, desconfiou do comportamento repetido de um médico anestesista e o flagrou colocando o pênis na boca de uma paciente excessivamente sedada por ele durante seu parto cesárea. Ela não foi a única. Uma reportagem da revista Piauí mostrou que o hospital onde os estupros aconteceram foi construído graças à luta política de mulheres do bairro, que em 1986 produziram um documento chamado “Dossiê Caxias”, que denunciava casos de violência que aconteciam nas maternidades da região e exigiram melhorias nos serviços de saúde. Durante a pandemia, o movimento se desmobilizou. “Sinto nojo e ódio de estar voltando aqui 36 anos depois para falar da mesma coisa”, disse uma delas.
Lembremos que foi no final do mês de junho que a Suprema Corte dos EUA revogou o direito ao aborto em revisão de uma decisão de 50 anos atrás. Os direitos das mulheres estão sempre sob ataque, não é seguro descansar.
Em “O aborto como acontecimento feminino” (OP 327/2022), Juliana Lang de Lima (SBPdePA) inicia seu texto apontando justamente o quanto o tema é antigo, o quanto precisamos bater na mesma tecla: “podem as mulheres decidir sobre seus corpos?”. A autora descortina fantasias e relações de poder que subjazem por detrás da criminalização.
“De forma geral, aquela que aborta escandaliza a sociedade por trazer notícias de uma sexualidade profana, desvinculada da tarefa reprodução. O horror que o direito ao aborto provoca é amigo íntimo da idealização que se direciona às mães, ambos alimentados pelo temor infantil da rejeição. Afinal, se as mulheres abortam, e assim o fazem desde que o mundo é mundo, isso significa que há filhos que não são desejados.”
E, citando a escritora Rebeca Solnit, sugere: “(…) manter o aborto na ilegalidade é uma ferramenta de manutenção de poder por parte dos homens, que gozam do privilégio da não gravidez, usando-o como instrumento de ganhos no mundo do trabalho.”
Dominação, exploração e violência são estruturais, e, sabemos, incidem majoritariamente sobre os corpos de mulheres, negros, indígenas, e LGBTQIA+. Mas são também a forma como a nossa cultura se relaciona com o planeta – deflorando, consumindo, descartando.
Se, como psicanalistas do nosso tempo, pretendemos sustentar alguma esperança no século Dragão sem recorrer ao negacionismo, precisamos refutar o mito do brasileiro cordial e, depressivamente, elaborar formulações mais verdadeiras a respeito de nós mesmos.
Em “Um país em guerra” (OP 328/2022), Sylvain Levy (SPBsb) nos chacoalha com a verdade das estatísticas da concentração de renda e dos homicídios no Brasil. Somos o país em que “cinco indivíduos detém mais renda e posses que 100 milhões de pessoas – cerca de 50% da população”, e também “o país que mais comete homicídios no mundo”. A proteção dos privilégios não se dá por diplomacia.
“No fundo, a nossa forma de convívio social é ‘justamente o contrário da polidez’. Ou seja, a atitude polida equivale a um disfarce que permite cada qual preservar sua sensibilidade e suas emoções e com essa máscara, ‘o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social’.”
O autor prossegue: “O violento homem nada cordial que habita cada um de nós brasileiros pode servir de pista para entendermos os avanços de popularidade e de aceitação que vão marcando o governo e a pessoa de Jair Bolsonaro.”
Não é à toa que o número de registros de armas de fogo aumentou em 474% durante os anos de governo Bolsonaro, dado bastante preocupante considerando o aumento da tensão social decorrente da proximidades das eleições. Este mês testemunhamos o assassinato a tiros de Marcelo Arruda, tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu, em sua festa de aniversário, por um apoiador de Bolsonaro. Apesar das circunstâncias, o assassinato não foi considerado crime por motivação política. Nossas instituições estão sendo testadas.
Também no mundo virtual a potência do mecanismo de disseminação das Fake News -que, especialistas afirmam, foi decisiva em resultados de pleitos em vários países do mundo – ameaça nossas eleições e põe à prova o TSE. Sarah Barreto Prado (SBPRP) em seu ensaio “Mundo Virtual: Entre a conexão e a desconexão” (OP 330/2022) explora aspectos subjetivos e políticos da nossa imersão nos mundos virtuais controlados por algoritmos: “ a virtualidade possui recursos como os algoritmos que sustentam as chamadas bolhas. Grupos homogêneos e usuários acabam cercados por um contexto que lhes dão a sensação de que todos se parecem e pensam como ele, há um prejuízo da percepção da realidade e da verdade (…)”.
A autora nos oferece uma pergunta importante de ser feita no século Dragão, se pretendemos ser capazes de continuar dialogando, mesmo num mundo tão hostil: “O que será que nos torna mais ou menos capazes de lidar com as dúvidas e incertezas?”
Apesar da negação da finitude estar em voga, não estamos no romance de Saramago, e, para aqueles que seguem sintonizados – consigo mesmos, com a verdade, com a vida, com a nossa circunstância enquanto humanidade – a morte segue nos atingindo em seco.
No mês de julho perdemos Sérgio Paulo Rouanet. Em tempos em que Achille Mbembe interpreta que “a era do humanismo está terminando”, tamanha a força do capitalismo neoliberal que se infiltra nas relações humanas produzindo niilismo, e transformando tudo em tecnicismo, rivalidade e guerra, a perda de um humanista é um desfalque doloroso e amedrontador para aqueles que ficam, especialmente se, como ele, sonham com “um mundo capaz de abrigar uma humanidade que ainda não se realizou”. Ney Marinho, em sua bela homenagem póstuma – “Adeus a um amigo da psicanálise” (OP 326/2022), descreve a presença marcante e as contribuições preciosas desse grande homem em sua obra e sua ampla interlocução com o meio psicanalítico.
Ecoamos neste editorial as palavras de Ney, na tentativa de fazer de sua memória de Rouanet uma presença viva em nosso século Dragão: “Sempre saí dos encontros com Rouanet enriquecido, não de conhecimento ou erudição, embora estivessem sempre presentes, mas de um contato humano realmente amoroso, voltado para o que há de melhor em todos nós: a capacidade de amar, de se apaixonar por uma causa, uma ideia, um companheiro/a e, certamente, pela humanidade que existe em cada um, mesmo em nossos adversários.”
No mês de julho o OP seguiu trabalhando e aprendendo com Wania Cidade na produção da segunda temporada do Mirante. Lançamos o 4º episódio, Descolonização da Psicanálise, em que escutamos Luciano Dias, professor da UFRRJ, e Paola Amendoeira (SPBsb).
Nós da curadoria do OP endossamos as palavras e o convite de Samantha para prestigiarmos essa posse histórica e apoiarmos sua gestão na FEPAL. Wania representa mudanças que queremos ver no mundo.
Na nossa página do Instagram @observatorio_psicanalitico, além da publicação de fragmentos dos ensaios deste mês, relembramos nas terças culturais os ensaios “Escrita psicanalítica: espaço para sonhar, interpretar e escrever” de Leila Tannous Guimarães – SPMS, “Mafalda não morreu. Quino se vai… e nos deixa Mafalda”, de Dora Tognolli – SBPSP, “Vidas Negras importam X: a branquitude em cena no curta metragem ‘Dois Estranhos’” de Rafaela Degani – SBPde PA; e nos tbts, os ensaios “Moral sexual ‘civilizada’?” de Suzana Muszkat – SBPSP, “Feminicídio e cultura” de Daniela Yglesias de Castri Prieto – SPBsb, “…Devíamos nos alegrar porque os tempos tinham mudado…”(OP 115/2019) de Eloá Bittencourt Nóbrega – SBPRJ, e “Porque era ele, porque era eu…”, de Beth Mori – SPBsb.
Sigam nossas publicações!
Equipe de curadoria,
Beth Mori, Ana Valeska Maia, Daniela Boianovsky, Rafaela Degani e Renata Zambonelli
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Categoria: Editorial
Palavras-chave: Observatório Psicanalítico, Editorial, Patriarcado, Emergência Climática, Violência
Colega, click no link abaixo para debater o assunto com os leitores da nossa página no Facebook: