Observatório Psicanalítico – Editorial janeiro/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Sódepois 33 / Janeiro 2023

O mês de janeiro de 2023 ficará marcado na história democrática brasileira por dois acontecimentos: no dia 1º aconteceu em Brasília a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, para o período de 2023 a 2026, tendo ao seu lado Geraldo Alckimin como vice-presidente. O evento reuniu milhares de pessoas na Esplanada dos Ministérios, vindas dos quatro cantos do país, bem como líderes estrangeiros, para comemorar sua vitória. O primeiro dia do ano também é comemorado como o Dia Mundial da Paz. Segundo a crença popular, “a cada ano que começa é como se zerássemos tudo e começássemos de novo. Tudo pode ser esquecido e, sobretudo, perdoado, condição essencial para a Paz”. O segundo acontecimento ocorreu no dia 8 de janeiro, há apenas uma semana após a posse, contrariando a expectativa da busca pela paz em nosso país, que segue dividido desde o impeachment de Dilma Roussef em 2016. Nesse dia ocorreu o atentado contra o Estado Democrático de Direito. Uma tentativa de ruptura institucional realizada por apoiadores do ex-mandatário do país. Mesmo derrotado nas urnas de 30 de outubro de 2022, continuou realizando movimentos para concretizar um Golpe de Estado. “A minuta do golpe estava em todas as casas”, falou recentemente o presidente de seu partido, com naturalidade, produzindo provas contra eles mesmos.

No clima de alegria e bem-estar da maioria vitoriosa dos brasileiros que apostaram na democracia, regime político em que todos os cidadãos participam igualmente e escolhem seus governantes para o exercício do poder maior da governança do País, Leopold Nosek (SBPSP) escreveu o ensaio “Bem-estar na civilização” (OP 359/2023). A partir de convite para falar sobre o texto freudiano “O Mal-estar na Civilização” (1930), Nosek iniciou sua fala sob outra perspectiva, a do “Bem-estar”, referindo-se ao resultado das eleições presidenciais; afinal, “saía derrotado daquele pleito um nome fortemente atrelado a uma visão negacionista da cultura, da ciência, da importância da saúde, de um Estado em defesa das necessidades da população. Perdera nas urnas um candidato que advogava o primado da economia com o lema do cuidado com a política fiscal, que aliás foi tremendamente burlada por investimentos voltados à reeleição. Por quatro anos assistimos a uma apologia das armas, à destruição da cultura e da ciência, ao trato inacreditável do desafio de uma pandemia, ao destrato da questão ambiental, à difusão de mentiras mirabolantes; tivemos de suportar um mandatário que seria risível, não fosse a destruição que acompanhou seu percurso; por fim, fomos inundados com a visão onipresente de bandeiras de cunho fascista. Era aterradora a perspectiva da permanência desse estado de coisas por mais um mandato. As razões de meu bem-estar na civilização não podiam ser mais evidentes.”  

Nosek também se refere à importância da participação de psicanalistas na vida pública de seus países. E cita o manifesto, iniciativa de colegas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo que, “sem meias-palavras, se posicionaram explicitamente diante das opções em jogo. Com a adesão de profissionais psicanalistas de outras instituições, obtivemos mais de 3 mil assinaturas. Ressalte-se que o documento circulou apenas na véspera e na antevéspera da eleição. Esse fato não só me alegra como me deixa orgulhoso de pertencer a essa instituição.”

Nós, da curadoria do OP, impactadas com as notícias das invasões realizadas por vândalos golpistas aos prédios das sedes dos três poderes da República em Brasília, escrevemos o ensaio “Democracia em Crise” (OP 360/2023): “As imagens chocantes da destruição do patrimônio brasileiro, do ataque e brutal às maiores representações das Instituições democráticas, nos deixaram estarrecidas.” Escrever foi a forma que encontramos para elaborar esse trágico evento; afinal, como os demais brasileiros, comemorávamos a vitória da Democracia. 

Recentemente, nossos colegas psicanalistas de países latino-americanos passaram a integrar o espaço de reflexão do Observatório Psicanalítico compartilhando suas angústias a respeito das ameaças que os valores civilizatórios e democráticos vêm sofrendo. Isso é um sinal de que a psicanálise está cada vez mais sensibilizada por essa crise que nos aflige, convocando-nos a pensar juntos as dores comuns, muito além das fronteiras políticas dos países. No ensaio “As invasões bárbaras” (OP 361/2023), Mariano Horenstein, psicanalista da APC (Associação Psicanalítica de Córdoba), inaugurou no OP o acolhimento de escritas de colegas de qualquer instituição psicanalítica da IPA (Associação Internacional de Psicanálise). Esse texto trata do olhar crítico cotidiano de psicanalistas que, como quaisquer cidadãos, acompanham com preocupação os fatos sociais, políticos, culturais. “Para um cidadão comum – como  somos nós, os psicanalistas – seguir os fatos com preocupação, expressar uma opinião ou discutir na nova ágora das redes sociais, pode ser um gesto de compromisso tanto quanto ocupar as ruas, quando necessário, em defesa de ideias que requerem nossos corpos para serem sustentadas”. Mariano, colega argentino, reafirma que os acontecimentos que ocorrem no Brasil irradiam efeitos nos demais países latino-americanos que, historicamente, vivenciam a ruptura da ordem democrática como uma opção, o que torna o fato preocupante a todos os cidadãos de nosso continente. Sabemos que “a democracia nesses países vem sendo maltratada”, e cita a corrupção como um evento comum entre nós, infelizmente, “uma corrosão do vínculo social, o vínculo que nos permite reconhecer-nos uns aos outros como uma comunidade imperfeita.” E acrescenta: “É certo que em nenhum outro sistema de governo a psicanálise pode prosperar.” 

Em “Afetação da lei” (OP 362/2023), a psicanalista Alicia Killner da APA (Associação Psicanalítica da Argentina) inicia sua escrita declarando o quanto é decepcionante para sua geração “ver novamente o desprezo pela democracia” que vem das ruas, de parte das Forças Armadas e de pessoas que ocuparam as instituições brasileiras no governo ora findo. “A explicação se torna um ponto de interrogação que cola uma lasca em nosso pensamento.” Para a colega Alícia, “os líderes sabem como capturar a alma de nosso tempo. É necessário um canalha, da forma como Lacan o descreveu, alguém que, nas palavras de Agamben, se apresenta como uma exceção à lei.” No Brasil, foram quatro anos de governo comandado por “um sujeito que maltrata as mulheres, obscenamente dita sobre seus corpos, põe fogo na floresta que o mundo respira, alegremente se entrega aos seus caprichos irracionais, nega os relatórios científicos sobre a COVID, as vacinas e, claro, sobre a mudança climática, que não tem nenhum problema em ser vulgar, […] sabe gozar de sua vulgaridade e de sua arrogância enquanto come frango frito do Kentucky Fried Chicken na Flórida.” E conclui: “O que parece pertencer ao campo fora da sessão psicanalítica, se intromete nele, afetando o que da lei nos diz respeito a todos, o que da lei funda a estrutura.”

Augusta Gerchmann e Cesar Augusto Antunes, colegas da SBPdePA, perplexos diante do acontecimento, escreveram o ensaio “O incrível presidente que encolheu” (OP 363/2023). Para eles, “a mediocridade e a indiferença do ex-presidente em relação ao próximo sempre o impediu de crescer e ser capaz de ter alguma empatia com o semelhante. Os que o cercavam, por sua vez, acreditando em suas meias verdades, ou mentiras estrategicamente fabricadas, as reproduziam como eco em sua paixão por Narciso.” […] “O primitivismo que habita o ser humano foi despertado e encorajado por esse líder sem valores culturais, éticos e estéticos, sobre aqueles que foram crentes ou coniventes com mentiras que lhes pareciam verdades. Não fosse assim, não teriam quebrado e queimado obras tão valiosas, como sabemos ter ocorrido com as obras de Freud, em passado não tão distante e que se repete agora com o acervo artístico do Congresso.”

Em 2019, parafraseando o crítico de arte brasileiro Mario Pedrosa – “Em tempos de crise, fique do lado do artista” –, nossa colega Silvana Rea (SBPSP), em seu ensaio 

 “Em tempos difíceis fique com a arte” (OP 84/2019), ressaltara o risco que corríamos em perder o que já havíamos conquistado. Para ela, “a arte pode ser uma ameaça, pois promove a reflexão e a abertura para o novo. Particularmente a arte contemporânea, que se apresenta como alteridade radical, questionando o espectador, provocando mudanças.” No mesmo tom, Carolina Freitas (SBPdePA), em “Pra que a vida nos dê flor” (OP 364/2023), nos lembra a riqueza da cultura brasileira e como ela pode nos ajudar a atravessar momentos difíceis. Cita nosso grande artista Milton Nascimento, com suas “belas canções e melodias” que, com 60 anos de carreira e 80 de vida, encerrou sua carreira no fim de 2022. Bituca, como é conhecido pelos amigos, tornou-se importante representante musical de uma geração que viveu na própria pele as duras consequências da censura impetrada pelos governos militares durante a ditadura. Artistas que “lutaram para serem senhores de seus desejos, emanaram liberdade, amor e respeito à diversidade: pilares de uma sociedade utópica.”

Valton de Miranda Leitão (SPFOR), com o ensaio “A Repetição Histórica no Brasil” (OP 367/2023), cita o pronunciamento da nossa colega Regina Esteves, então presidente da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza, quando essa Sociedade foi reconhecida como uma instituição da IPA, no seu 51º Congresso, em 2019. Segundo Valton, Regina, psicanalista implicada com o sofrimento psíquico oriundo da dimensão sociopolítica, fez um “discurso antecipatório sobre a incrível devastação ocorrida no Brasil [desde o golpe congressual de 2016 até a eleição de Lula em 2022]. O tratamento genocida, ou seja, quando deliberadamente se deseja deixar morrer, é apenas um dos elementos de uma cadeia catastrófica”. 

Estamos sofrendo “os efeitos diretos da violência e a crueldade do Estado”. Presenciamos “fanáticos movimentos de massa em todo o mundo. E acreditávamos que as conquistas progressistas se acumulariam e, uma vez alcançadas, permaneceriam. Mas a verdade é que é muito mais fácil e rápido destruí-las do que criá-las”. Quem diz é nosso colega uruguaio Javier Garcia Castañeiras (APU – Associação Psicanalítica do Uruguai) em seu ensaio “Buscar Juntos” (OP 365/2023), sobre os atos golpistas ocorridos no Brasil. “Achávamos, inocentemente, que a força da razão, da afetividade, da hospitalidade e da solidariedade seriam capazes de sustentar mudanças progressistas, mas desconhecíamos a força do dinheiro, das armas, do poder e das paixões dogmáticas contra o diferente.” Javier-Garcia nos lembra do poema “O ódio”, da poetisa e ensaísta polonesa e vencedora do Nobel de literatura em 1996, Wisława Szymborska (1923-2012). Nos seus versos ela nos apresenta “os momentos de ódio e destruição a partir de sua experiência com o nazismo, stalinismo e ao ceticismo”. Buscamos as palavras para pensar esse sentimento tão ordinário, mas que quando surge sempre nos surpreende pelo impacto de sua violência. Extraímos algumas palavras do poema de Szymborska para nos ajudar a pensar: “O ódio… Ele próprio gera as causas que lhe dão vida. Se adormece, nunca é um sono eterno. A insônia não lhe tira as forças; aumenta.” Javier conclui sua escrita nos convocando: “É uma questão de todos, uma responsabilidade de todos, uma responsabilidade dos sujeitos sociais, e os psicanalistas não estão fora dessas cidadanias. Precisamos nos unir e falar, mesmo que não encontremos a palavra forte o suficiente para contrariar esta barbárie humana. O destino não está em encontrar a palavra certa ou o texto completo, e sim pesquisar e fazer isso com outros.”

Laura Verissimo de Posadas (APU, Associação Psicanalítica do Uruguai), em seu breve ensaio “Contra-dizer” (OP 366/2023), se propôs a pensar sobre a “ética do psicanalista que impõe a abstinência de julgamento, a de generalização e desqualificação” diante de um movimento de massa. Laura nos lembra que tanto no consultório quanto na vida cotidiana “há todo um trabalho de desconstrução das narrativas e de seus enraizamentos em convicções”. […] “Para os psicanalistas, a perversão é precisamente degradar o outro sujeito humano à categoria de objeto para o gozo do perverso”, como ocorreu no dia 8 de janeiro, que “nos impactou com a vandalização das instituições representativas do laço social democrático.” 

Terminamos o mês intranquilos com os ataques golpistas que, pelo modo perverso de lidar com a vida, produziram sofrimento em nossa população. Ao mesmo tempo, nos sentimos aliviados com as noticias diárias sobre o trabalho do atual governo e das demais instituições que seguem apurando os fatos e investigando a responsabilidade dos envolvidos. 

Em janeiro, nossa equipe do Instagram relembrou os ensaios “Luta democrática e reforma psiquiátrica. Em memória de David Capistrano da Costa Filho” IOP 38/2017), de Liana Albernaz (SBPRJ), “Genocídio” (OP 251/2021), de César Augusto Antunes (SBPdePA); “Falando de Amor” (OP 54/2018), de Rossana Nicoliello (SBPMG). Acompanhe nossa página: @observatorio_psicanalitico

Realizamos, também nesse mês, o 8º episódio da 3ª temporada do podcast Mirante, que trata sobre “Psicanálise e Democracia”, com o título “A crise da democracia na era digital”. As redes sociais foram fundamentais na formação dos atos golpistas e mostraram seu imenso poder de mobilização. Elas fomentam as crenças conspiratórias, o negacionismo, o fanatismo e as “Fake News”. Uma realidade moldada pelo que hoje entendemos como “pós-verdade” – ideias inspiradas pelo desejo e pelas emoções de quem as cria, mas que não se traduzem em fatos reais. E são essas pós-verdades que passam a dominar o cenário político e as relações sociais. Não somente o Brasil, mas vários países da América Latina, tais como Peru e o Equador, têm sido atravessados por recentes convulsões sociais. Partindo desse cenário, conversamos com Bernardo Tanis (SPBSP) e com a antropóloga Paula Sibilia (UFF).

A democracia na era digital enfrenta, portanto, severos obstáculos. Estamos preparados para enfrentá-los? 

Um abraço a todos, da Equipe de Curadoria do OP:

Ana Valeska Maia (SPFor)

Beth Mori (SPBsb)

Daniela Boianovsky (SPBsb)

Gabriela Seben (SBPdePA)

Renata Zambonelli (SBPSP)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores) 

Imagem: Sede do Poder Executivo, o Palácio do Planalto foi um dos alvos dos terroristas de extrema direita / Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Categoria: Editorial 

Palavras-Chave: Observatório Psicanalítico, Democracia, Golpe de Estado, 8 de janeiro, Psicanálise Implicada e Engajada.

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Categoria: Editoriais
Tags: 8 de janeiro | democracia | Golpe de Estado | observatorio psicanalitico | Psicanálise Implicada e Engajada
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