Observatório Psicanalítico – OP 368/2023 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Pactos de morte e o futuro dos filhos brasileiros: “Todo dia a mesma noite”

Morgana Mengue Saft Tarragó (SBPdePA)

No dia 27 de janeiro de 2013 fez exatos 7 dias que eu soube que minha vida mudaria para sempre: me tornaria mãe. Logo na manhã daquele domingo as notícias desencontradas nas redes sociais e nos jornais contrastavam com os sentimentos que estávamos vivendo em casa. Uma semana me levava da notícia mais linda para a experiência mais desesperadora: filhos também morrem. 

Para além dos movimentos de vida, que incluem nascer e morrer, nos deparávamos com uma tragédia anunciada. Há um desencontro desesperador entre a dor inominável e a ideia do que poderia não ter acontecido, não por uma questão de destino, senão de irresponsabilidade de quem tinha autoridade para fazer cumprir a lei. Diferente de Santiago Nasar, personagem de García Márquez (2005), essas mortes não foram anunciadas em sonhos premonitórios.

Contamos com nossos melhores recursos para dar conta do excesso e buscamos na teoria que temos à mão subsídios para pensar. O que não pôde impedir a tragédia de seguir seu curso? Quiçá é a pulsão de morte (FREUD, 1920), manifesta no mundo externo como destrutividade, ou o narcisismo de morte (GREEN, 2008), ou, ainda, a perversidade que barra o reconhecimento do outro como sujeito, aprisionando-o no lugar de objeto e que inverte a lógica? Como um dos resultados dessa inversão, os pais são processados pelo crime “de denúncia”? Quem sabe são os arruinados pelo êxito, vítimas da impossibilidade de desfrutar o próprio sucesso ou da busca desenfreada por punição no ato de cometer um crime? Talvez a arrogância de quem se toma por exceção?… (FREUD, S., 1916 [1915]) E a canalhice, que provavelmente não será encontrada em nenhum dicionário psicanalítico. A ganância, que prioriza a quantidade e desdenha a qualidade, e também nos diz de um psiquismo precário, de um desamparo primordial. Entre a nossa mais sofisticada capacidade de tentar compreender e a emergência de sentimentos demasiadamente humanos, cada um de nós provavelmente tentou equilibrar-se na escuridão e na fumaça tóxica que matou 242 jovens e transformou a vida de pais para sempre. Como ser mãe e pai sem filho?

Assistir à minissérie “Todo dia a mesma noite” é se deixar retorcer às entranhas. É entregar-se a sentimentos inomináveis, chorar, entristecer-se profundamente, identificar-se com aquelas mães e pais, temer que o próprio filho cresça, indignar-se com a impunidade e os pactos perversos que ainda prevalecem no nosso país. Pactos que permitiram, sim, que a tragédia da boate Kiss acontecesse, que abrem caminhos para a devastação das florestas e para o sofrimento e às inúmeras mortes das crianças Yanomamis e meninos e meninas pretas, mantendo o fluxo para a manutenção do não-lugar na nossa, mas não de todos, sociedade brasileira. Mariana, Brumadinho, acidente aéreo da Chapecoense.  Sempre são os filhos que morrem. E isso é desesperador. Contudo, é imprescindível que não percamos a esperança que faz avançar, a aposta de que vale a pena investir na vida, nas vidas de hoje e naquelas que virão.

A vitalidade – na impossibilidade de encontrar uma palavra mais bem apropriada – dos pais das vítimas (todos são vítimas, pais e filhos) da tragédia de 27 de janeiro, por vezes, beira a incompreensão. Na minissérie – retrato da vida como ela é -, apesar da profunda dor, da culpa, dos momentos de negação, dos ataques, da afronta descabida dos que dizem “já chega, vida que segue” 10 anos depois – pais e sobreviventes, provavelmente amparando uns aos outros, vão além do desamparo pelo descaso legal e lutam por justiça. Esfarrapados por dentro, tentando não perder a potência da voz: “foi assassinato!”. A fala de um pai é absurdamente verdadeira. A fala que denuncia o assassinato não desmente que a filha continuará morta, mas o julgamento e a prisão dos condenados a deixará em paz: 

“Quando a justiça vier, nossos filhos vão continuar mortos, nossas vidas vão continuar vazias, mas pelo menos, pelo menos, eles vão poder descansar […] quem tira uma vida merece, ao menos, ser julgado”.

Deixará em paz, os filhos – os mortos e os vivos, na medida em que a lei, tomada como protetora, tem o compromisso de amparar a todos. Sem exceção! Assim revela uma mãe, atacada por um passante que diz que os pais devem sair dali, porque já passou: “tu não acha que já não deu, não? 5 anos e ninguém tira essa desgraça daqui. A cidade precisa viver […] eu tô pensando nos meus guris” ele diz. “A gente está brigando pelos teus guris, porque minha filha vive aqui. Olha!”, a mãe responde. Silêncio. Aliás, são marcantes, na minissérie, os vários momentos de silêncio entre tentativas de narrar o vivido.

“Todo dia a mesma noite” são, para nós espectadores, 4 horas de lágrimas, não tenha dúvida. Para os que ainda vivem aquela noite, já contam 10 anos. Contudo, generosos, mães e pais narradores da tragédia nos permitiram momentos em que o riso voltou a ter espaço, relações de amizade revigoram os dias que seguem sendo de luta. Filhos nasceram!

É possível que o texto de Freud, “Sobre a Transitoriedade” (FREUD, S., 1916 [1915])., mal comparado, porque tem algo que escapa à lógica do possível de ser compreendido, nos lembre que a existência e a continuidade de movimento circulam nestes espaços de respiro, mesmo que rente ao chão, onde a fumaça teve menos alcance e alguns puderam sobreviver, que quase nada dura para sempre.

A justiça ainda não foi feita. Ninguém foi preso. A luta não terminou. A paz dos que não descansam ainda é uma utopia! Viva a revolução!

Longe, longe, ouço essa voz

Que o tempo não vai levar

Morte vela sentinela sou do corpo desse meu irmão que já se vai

Revejo nessa hora tudo que ocorreu, memória não morrerá

Longe, longe, ouço essa voz

Que o tempo não lavará

Precisa gritar sua força ê irmão, sobreviver

A morte inda não vai chegar, se a gente na hora de unir

Os caminhos num só, não fugir e nem se desviar

(Sentinela, Milton Nascimento)

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria:  Política e sociedade 

Palavras-chave: tragédia, desamparo, impunidade, luta.

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Tags: desamparo | impunidade | Luta | tragédia
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