O psicanalista que amava os livros ou Jayme Salomão (1928-2018)

Observatório Psicanalítico 60/2018

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

O psicanalista que amava os livros 

ou

Jayme Salomão (1928-2018)

Ney Marinho (SBPRJ)

 

Este texto não é um obituário, é um depoimento, uma recordação, um reconhecimento. Não fui aluno de Jayme Salomão, embora participássemos da mesma atividade de ensino e ele fosse um colega bem mais velho e experiente. Não fui também um amigo íntimo de Jayme, embora tivéssemos amigos em comum – Rosa Beatriz, sobretudo, pois, foi na sua casa que o conheci – mas tínhamos um contato bissexto e imediato, certamente, mediado pela paixão pelos livros.

Quando nos encontrávamos, a conversa se esticava e perdíamos a hora, quer sobre os últimos lançamentos, ou, sobre a Feira de Frankfurt da qual sempre me trazia novidades, ou ainda, os inúmeros projetos que lhe apresentava e com paciência, sem dúvida seduzido, ouvia para com delicadeza mostrar sua inviabilidade! Cito alguns: publicar, em português, as obras de Otto Rank enquanto discípulo de Freud: Mito do Nascimento do HeroiO DuploTrauma do Nascimento. Ouvia minha argumentação, de jovem apaixonado pela descoberta das origens da Psicanálise e, ao final, me dizia: “Ney, você tem razão, mas só há um problema: se eu levar adiante esta publicação corremos o risco de só termos dois leitores, eu e … você. Infelizmente, ninguém mais lê Rank!” Cruel verdade. Ríamos. Mas, no próximo encontro, outra conversa: que tal uma série de Psicanálise e Filosofia? Parecia concordar. Eu argumentava sobre tanta coisa desconhecida aqui – Gregorio Klimovsky, Marcia Cavell, obras quase que escondidas de Frege ou Norman Malcom – e a conversa fluía, terminando como sempre com a dura realidade de nosso ainda estreito e limitado mercado editorial.

Mas Jayme não era só um parceiro de românticas recordações literárias, mas um formidável aventureiro! Não fosse sua coragem temerária não teria traduzido a Standard Edition de Freud, enfrentando incompreensões e críticas. O mesmo ocorreu, de forma talvez mais dramática embora menos conhecida, com sua perseverança em publicar Bion, com ótimas traduções – Wellington Dantas, ele mesmo com Paulo Dias Correia e, mais tarde, o casal Paulo e Esther Sandler – e a ousadia máxima: publicar a trilogia Uma Memória do Futuro. Inicialmente em inglês, pois, esta obra de Bion não foi aceita então por editores de língua inglesa por temerem que fosse um sinal de deterioração mental do grande psicanalista. Este ato de coragem só foi possível porque Jayme aliava a ousadia à erudição e ao discernimento de um legítimo livreiro. Viu na época o que o conservadorismo e o preconceito cegavam: uma obra destinada a dar uma linguagem própria (uma entre as muitas possíveis) à psicanálise em vez de falar de psicanálise. Da mesma estirpe de Beckett, Joyce, Rosa e Manuel de Barros.

Jayme no meu entender sofria de uma discreta timidez – parece um pleonasmo mas não encontro termo melhor. Minha desconfiança se confirmou quando Denise, numa fala emocionada de despedida, mencionou sua relutância em comemorar seus aniversários, inclusive o dos noventa, tendo os familiares que fazer uma festa surpresa. A este respeito, acrescentaria que a mesma atitude tomava quando publicava suas obras, sobretudo, as mais notáveis. Recordo-me de certa madrugada, passando pela saudosa Letras e Expressões, a boemia livraria que não dormia, umas três da manhã,  vejo: Cogitações, de Bion, traduzido pelo casal Sandler e publicado pela Imago, sem ninguém saber! Obra de enorme importância que recentemente lera no original e lamentara não estar ao alcance do público brasileiro. Algo semelhante ocorreu com o livro de Maria Emilia Steuerman: Os Limites da Razã– Habermas, Lyotard, Melanie Klein e a Racionalidade, uma pequena obra prima de competência filosófica e profunda compreensão do pensamento kleiniano. Obras que saiam quase clandestinas, lembrando tempos mais sombrios que esperamos enterrados num triste passado.

Tenho que parar. Toda despedida é sempre difícil, principalmente para os que não crêem. Recordo-me da emoção dos filhos (Marcia, Denise e Eduardo), da esposa, Veronica Rabello, dos netos, alunos, antigos pacientes e amigos no último adeus. Mas, como creio que os pensamentos existem, pelo menos os verdadeiros, independentes de pensadores, acredito que os sonhos, projetos, o compromisso com a psicanálise, com a livre difusão do pensamento – mesmo os mais selvagens – e as ideias que nortearam a vida de Jayme Salomão estarão sempre à disposição das novas gerações, cercados pela gratidão de seus leitores. 

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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Tags: Editoriais
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