Germano Almeida, o contador de histórias

Observatório Psicanalítico 59/2018

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

Germano Almeida, o contador de histórias

Anna-Maria de Lemos Bittencourt (SBPRJ)

 

É com este epíteto que Germano Almeida, o escritor caboverdiano, gosta de se definir. Criado na ilha de Boa Vista, descobriu desde menino a alegria de escutar na língua criola as histórias prazerosamente contadas pelos seus velhos habitantes. Emprenha sua escrita com esta saborosa cultura, mas também com o português castiço advindo da leitura de Eça, e dos muitos clássicos portugueses, resultando na vigorosa prosa que lhe fez merecer o Prêmio Camões, de 2018 – colocando-o ao lado de outros grandes como Saramago, Mia Couto e João Cabral. Disse-nos ele, na tentativa de resumir esta mestiçagem cultural da tradição oral e escrita: “O criolo é nossa língua, mas o português é o nosso instrumento… Na Boa Vista contavam histórias, oralmente. Eu aprendi a contá-las através da escrita”.

E Germano contou-as de tal modo que elas alçaram mundo, tornando as estórias e histórias locais – de Boa Vista, do Mindelo, de Cabo Verde, enfim – em literatura universal, como soem tão bem fazer, nossos preciosos Guimarães Rosa ou Manoel de Barros.

Ele conhece perfeitamente as características do seu povo insular, com sua alma migrante, seus sonhos e frustrações, a sofrida guerra de independência e a posterior luta por um país democrático. Apresenta este universo no romance, O Meu Poeta e, com ironia saborosa e corrosiva marca registrada do escritor denuncia a corrupção política e os desatinos do poder, no período pós-independência, temas tão atuais, aqui, do outro lado do Atlântico.

A impiedosa crítica política, e dos costumes da sociedade mindelense, estará causticamente exposta em seu romance, O Testamento do Senhor Nepomuceno. Com humor fino e ironia o autor descortina – a partir do fio central da narrativa, que é a leitura do testamento – a realidade reprimida da vida do Sr. Nepomuceno, e também aquela que lhe corre paralela: a terrível realidade social de abusos de poder, de desigualdade de classes, de machismo, de hipocrisia e de repressão sexual imposta à sensualidade natural do povo caboverdiano.

A leitura daquele testamento – que mais é um livro de memórias – carregado de lembranças e lacunas propicia, tal qual um processo psicanalítico, a elaboração e a reconstrução da história de Cabo Verde e do seu povo, a do nosso autor, Germano, assim como a de seus personagens Nepomuceno, e Maria da Graça, sua filha.

A premiação a Germano chegou justo no momento em que Brasil, Cabo Verde e Portugal organizam o IV Congresso de Psicanálise em Lingua Portuguesa, As Rotas da Escravidão, em Mindelo, na ilha de Sáo Vicente, palco das aventuras e desventuras do Sr. Nepomuceno. E enquanto as acompanhamos parece que para nós se vão abrindo os portões da cidade, e passeando pela Praça da Estrela, pelo Alto Miramar, pelo por do sol na Baía das Gatas, vamos conhecendo uma cidade, uma ilha, um país que, através de amores, sofridas lutas e dores, transformou um entreposto de escravos, uma colônia, em um país livre com esta riqueza e pujança que Germano Alves representa.

Viva Germano! Viva Cabo Verde! Até novembro!

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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