Observatório Psicanalítico – OP 231/2021
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
O inimigo oculto e a amiga
Cintia Buschinelli (SBPSP)
Se há algo por que nós, psicanalistas, temos especial apreço, é a força das palavras ditas – esse som articulado sobre o qual nossas emoções se juntam, como se elas, as palavras, fossem um campo imantado sempre pronto para receber sentimentos. E a emoção é essa experiência humana particularmente preciosa que se apega às palavras e ressoa por lugares, os mais diversos.
Há algo tão inestimável quanto falar e ser ouvido? – Não.
Essa foi a resposta que imaginei ouvir nesse momento do leitor desse pequeno texto.
Pois bem, foi assim, conversando com uma amiga, através daquele aparelhinho mágico que oferece uma voz conhecida para um diálogo, foi assim, num bate papo agradável que desatei nós, os quais eu mal percebia que existiam, depois de um período de infecção por covid-19.
Quais traços a infecção por covid-19, tão temida por tantos de nós (e com razão), pode inscrever no mundo emocional daquele que viveu tal experiência?
Bem, não custa lembrar que nossa subjetividade sempre oferece uma tonalidade particular para tudo aquilo que vivemos. Sendo assim, essa história que conto aqui a vocês está circunscrita em uma vivência íntima que levanta imediatamente uma dúvida: será que tornarei publico esse relato?
Responder essa pergunta nesse momento é prematuro. Vamos lá.
Certa noite, um mal estar inexplicável foi tomando conta de mim. Náusea, corpo levemente febril e uma dificuldade potente para descansar e adormecer. Essas sensações, de certa forma, exigiam minha mente em alerta, pois meu desejo de adormecer não tinha força para ser obedecido.
Pela manhã, logo que o dia se fez presente, ao enviar mensagem ao médico que habitualmente me acompanha, fui surpreendida com a indicação para procurar o pronto socorro.
Era dezembro, e a pandemia de coronavírus, segundo me parecia, ainda não tinha tomado o vulto que tão logo, a passos largos, se fez presente. Mas, não era bem assim, eu estava enganada.
Primeira surpresa: pronto atendimento do hospital lotado.
Após uma curtíssima consulta, fui encaminhada ao local preparado para pacientes infectados com o novo vírus.
Conto a vocês, cada passo desse momento, com um grau de intimidade como se falasse comigo mesma.
Então, continuo. Ao me encaminhar para o andar indicado, no elevador, acreditem, sentei no chão, pois não tinha forças para me manter em pé no decorrer dos segundos que me levariam ao sétimo andar. Segundos eram a eternidade.
O bem estar logo foi restabelecido: medicação e acomodação em um quarto silencioso e tranquilo.
Até esse momento, o relato que dirijo a vocês se oferece como pano de fundo para o que motiva essa reflexão, qual seja, a experiência de isolamento que passou a ocorrer imediatamente e durou um certo tempo que, nesse momento, não consigo precisar. Na verdade, era o tempo da eternidade, aquele que não tem fim, um tempo que, paradoxalmente, não passou de alguns dias…
Perigo! Não se aproxime!
Esse alerta, conhecido nas praias interditadas para banhistas, passou a ser anunciado na máscara colocada sobre parte do rosto de cada um de nós.
A presença da máscara anuncia que ela protege a todos do inimigo invisível que pode estar dentro de nós. Um inimigo, não um qualquer, mas este que é capaz de estar presente em nossa potencia da vida, a respiração. Um inimigo que nos transforma em inimigos.
O primeiro estranhamento do qual ainda me lembro com vivacidade, surgiu quando reparei que as pessoas que trabalhavam no ambiente hospitalar, todos, sem exceção, se vestiam de um modo que eu só havia visto em filmes de ficção cientifica. Aqueles que colocam em cena um acidente nuclear que poderia contaminar a todos. Nesse caso, eu era o “acidente nuclear”, e as pessoas se protegiam do que eu poderia transmitir.
Esse sentimento de se evitar o contato humano, que permaneceu por um tempo longo depois que eu já estava de volta à minha casa, é uma marca que registra o que significa, emocionalmente, estar sob a égide da covid.
Aqui se inicia uma das experiências inéditas para muitos de nós, e que tem em sua essência o distanciamento físico entre seres que estão na categoria dos humanos.
Fique longe, não se aproxime, não abrace, beijo nem pensar, e palavras, somente as necessárias, a serem ditas com proteção. Também elas, as palavras, mesmo as mais doces e amorosas, podem machucar. Uma das mais humanas das expressões, a do afeto, será por um tempo retirada da cena de nossas vidas.
Esse seria um dos grandes efeitos colaterais dessa infecção que ainda permanece no âmbito do mistério, e que a ciência procura desvendar com eficiência e presteza.
O vírus, esse ser invisível, não reconhece continente, pátria, nem qualquer diferença que estamos habituados a elencar para reconhecer uma parte de nossa identidade. Não importa, todos nós, sem exceção estamos momentaneamente submetidos a ele, a algo que pode nos fragilizar ou esvaziar o que se tem de mais preciso, a vida.
O que sustenta o isolamento?
Depois de passado o mal-estar físico proporcionado pela infecção, haverá muito tempo ainda para reflexões. Um pensamento que me ocorreu, a propósito desse momento, foi a compreensão de por que estar privado de liberdade, em uma situação de prisão, por exemplo, se coloca como uma punição exemplar. Desde os antigos castigos educacionais – que eram adotados na condição de “ensinar“ as crianças de que determinadas regras de convívio deveriam ser seguidas – aos “castigos” que atualmente, espero, parecem anacrônicos: vá para seu quarto, fique olhando para a parede, não vai brincar hoje…
O essencial, como se vê nesses exemplos, é usar o isolamento como punição.
Então, é possível que o isolamento imposto pela covid ofereça um sentimento semelhante ao castigo infantil de não compartilhar o cotidiano da vida familiar.
O isolamento, nessa circunstancia de evitar a contaminação pelo vírus, poderia ser sentido como um “castigo”. Mas há algo mais, algo cuja força prevalece sobre a punição, qual seja, o sentimento de proteção. Ao nos isolarmos, conforme nos solicitam, sentimos que protegemos as pessoas que compartilham de nossas vidas.
O que sustenta o isolamento é o sentimento de pertencimento e de cuidado, ou seja, a velha e conhecida e muito bem vinda Pulsão de Vida, em maiúsculo e negrito, como lhe cabe.
E os dias vão se sucedendo, como é próprio deles, e as nuvens cinzas se derramando em uma chuva amorosa que nos faz reconhecer o belíssimo movimento da vida, por vezes turbulento e outros suave como um mar calmo…
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
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