Como Athena poderia enfrentar ares? 

Observatório Psicanalítico – OP 230/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

 

Como Athena poderia enfrentar ares?  

Ana Valeska Maia Magalhães  

Lina Schlachter Castro (SPFOR)

 

O mês de março tem a origem do nome em Marte, que é o deus romano da guerra. Na Grécia antiga, berço da mitologia romana, Marte é chamado Ares. É um deus extremamente selvagem, violento e sanguinário. Nas batalhas, Ares é sempre acompanhado dos filhos: Deimos (o terror) e Fobos (o medo).

 

Após um ano de pandemia, chegamos a março de 2021 enfrentando um campo de combate desordenado, brutal e doloroso. O número chocante de mortes por Covid-19 no Brasil, tem no desvario da gestão federal a sua parcela criminosa, na condução de um presidente que é chamado de “mito” por seus admiradores. Em 26/02/2021, o “mito” esteve em Tianguá, no interior do Ceará. Num momento recorde em números de mortes no país, ele promoveu aglomerações, não usou máscara, e instigou quem o assistia a fazer o mesmo. O “mito” tem penalizado gestores que implementam medidas de isolamento social, boicotado a compra de vacinas, rotulado as ações de enfrentamento da pandemia como “frescura”ou “mimimi”. Como “mito”, é o representante da guerra bruta, um Ares brasileiro, distribuindo terror e medo, cercado de um séquito de militares ávidos por exercer o poder e promover a destruição do estado de direito.  É o macho “imbrochável”, como disse no discurso de Tianguá.

 

Face fálica, onipotente, carregada de defesas maníacas. Um macho poderoso que influencia outros. Acompanhamos, junto aos índices alarmantes de mortes diárias, outros números também assustadores: na primeira quinzena deste ano, o Brasil registrou a marca de 04 feminicídios por dia! Algumas mulheres foram executadas pelos companheiros ou ex-companheiros na frente dos filhos. Outras foram torturadas antes de serem mortas, em rituais filmados e divulgados nas redes sociais, como aconteceu no mês passado, em Fortaleza. Sabemos que frequentemente as relações que culminam em feminicídio são marcadas por um histórico de agressões e que a condição de vulnerabilidade da mulher, em um país como o nosso, é agravada quando ela é negra. Séculos de escravidão e latifúndio aliados ao patriarcado pululam nas estatísticas: na maioria dos casos de feminicídio, as vítimas são mulheres pardas ou negras. Outro índice alarmante é o que atinge as mulheres trans, numa violência que se dá em dupla camada, na teia do patriarcado e da transfobia. 

 

De tão entranhado na corrente sanguínea da sociedade brasileira, o machismo estrutural é tolerado ou até recepcionado. Está na brincadeira que ridiculariza a mulher. Está na naturalização da desigualdade salarial. Está na regulação dos corpos femininos. Essa condição objetal é ressaltada por Susana Muszkat, na Revista Percurso (2019). Ao oferecer sua compreensão sobre a violência contra a mulher, lembra o mito de Adão e Eva, em que Eva é criada para aliviar o tédio de Adão, colocando a mulher à serviço do gozo masculino. Ela propõe que há uma violência autorizada pela sociedade patriarcal, a violência perversa, em que a mulher é desumanizada e transformada em objeto para uso do prazer masculino. Nela, há uma ideia de que a mulher pertence ao homem e não pode agir de forma autônoma. A violência, assim, visaria uma recuperação, em fantasia, da posse de um sujeito que foi transformado em objeto.

 

Na linha dos retrocessos, no início deste ano, assistimos à invasão do Capitólio norte-americano por machos-alpha misóginos fantasiados de vikings numa suposta demonstração de coragem e poder. Aqui no Brasil, testemunhamos com frequência as atitudes de um presidente que, além de propagar-se como macho “imbrochável” promove a desvalorização da mulher e a cultura do estupro. Prosseguimos com a pauta ultraconservadora da ministra Damares Alves, que se alinha a países como Arábia Saudita ao se posicionar sobre os direitos das mulheres em espaços como a ONU.

 

Por mais que sonhemos com a paz, o princípio de realidade escancara que estamos em guerra. O que fazer diante da guerra instaurada? Se Ares é o deus da carnificina, podemos recorrer a Athena, a deusa do pensamento, das artes e das ciências. A deusa estrategista.

 

Nesse mês de março, em que comemoramos o Dia Internacional da Mulher, questionamos que tipo de iniciativas a psicanálise poderia trazer para combater e prevenir a violência contra a mulher diante de situações como as que temos enfrentado. É preciso balançar as estruturas para modificá-las não somente em relação aos crimes violentos, como também às violências diárias. Sabemos que, como nos lembra Bourdieu (2019), a dominação masculina é resultante de uma violência, invisível até para as próprias vítimas, exercida principalmente pelas vias simbólicas da comunicação e do conhecimento (ou seria do desconhecimento?).

 

Acreditamos que a psicanálise pode colaborar ao criticar dicotomias binárias que sustentam a violência de gênero e as relações de poder. No caso do patriarcado, há uma divisão entre masculino e feminino que autoriza o homem a ter a mulher como propriedade. 

 

Diante disso, podemos, por exemplo, propor ideias que extravasam a diferença anatômica. Há a importante compreensão da bissexualidade psíquica, que salienta que há elementos femininos e masculinos em todos. Há a castração, que pode ser metaforizada, entendida como incompletude, indo além de uma diferença anatômica. Ela inclui uma dimensão ética, elaborada no âmago de lutas históricas nas quais a civilização só é possível a partir do respeito à alteridade e à diferença, celebrando a diversidade humana.   

 

O que mais pode ser feito? Qual é a nossa estratégia de combate?  

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

Foto: imagem de Pallas Athena,  Gustav Klimt, 1898

 

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

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